
E quanto a nós, brasileiros? Muitos se referem à malandragem, ao popular jeitinho brasileiro (e olha que trabalhamos 4 ou 5 meses dos 12 do ano só para pagar impostos). Mas sem dúvida, a tríade samba, mulher e futebol é a nossa auto-imagem campeã. Em suma, não produzimos nada, mas podemos entreter o resto do mundo com nossa "alegria". Mas afinal, onde começa essa história?
Durante séculos, a literatura foi exclusiva na formação de nossa subjetividade, de nosso inconsciente coletivo. Um grande repositório de nossas idéias, inclusive sobre aquilo que nós somos ou julgamos ser. E o primeiro capítulo dessa história é o que alguns chamam de "certidão de nascimento do Brasil".
O Quinhentismo

Carta a El-Rei Dom Manuel sobre o achamento do Brasil

A famosa Carta de Pero Vaz de Caminha, escrita entre 26 de abril de e 1º de maio de 1500, tinha como objetivo informar ao rei de Portugal o descobrimento e relatar-lhe as peculiaridades do novo território. É tida como uma espécie de “certidão de nascimento” do Brasil (expressão que adere ao ponto de vista do colonizador). Na verdade, é o primeiro retrato de nossa terra e, mesmo passados mais de quinhentos anos, ainda é bastante revelador de marcas profundas na formação de nossa identidade enquanto povo.
Aspectos importantes:
Descritivismo
Tudo na Carta é descrito nos mínimos detalhes. Repare como o índio é analisado como mais um elemento integrante da natureza exótica do local:
Visão paradisíaca, Concepção mercantilista e colonizadora e Ideal salvacionista
Corroborando a idéia de que o Brasil seria o "eldorado", paraíso perdido na América, a natureza exuberante, exótica e inexplorada é vista com fascínio.
A terra por cima é toda chã e muito cheia de grandes arvoredos. De ponta a ponta é tudo praia redonda, muito chã e muito formosa. [...]
Sem dúvida, a serviço da Coroa, Caminha não poderia deixar de registrar a preocupação em encontrar metais preciosos. Não logrando êxito nesse intento num primeiro instante (o surto aurífero só vai ocorrer no século XVIII, em Minas Gerais), o escrivão sugere insistentemente as potencialidades naturais do local e sugere sua colonização:
Nela até agora não pudemos saber que haja ouro, nem prata, nem coisa alguma de metal ou ferro; nem o vimos. Porém, a terra em si é de muito bons ares, assim frios e temperados, como os de Entre-Douro e Minho, porque neste tempo de agora os achávamos como os de lá.
As águas são muitas e infindas. E em tal maneira é graciosa que, querendo aproveitá-la, tudo dará nela, por causa das águas que tem.
Porém, o melhor fruto que dela se pode tirar me parece que será salvar esta gente. E esta deverá ser a principal semente que Vossa Alteza nela deve lançar.
A Herança Literária da Carta
Além desses caracteres que analisamos acima, a literatura informativa emprestou muitos de seus temas e formas para períodos literários posteriores, em especial para o Romantismo (indianismo, fundação da nacionalidade) e para o Modernismo (revisão crítica da identidade nacional).
O poeta modernista Oswald de Andrade realizou apropriações parodísticas da carta, subvertendo seu sentido ao recortar as frases do texto original, dispondo-as de outra maneira.
As Meninas da Gare
Eram três ou quatro moças bem moças e bem gentis
Com cabelos mui pretos pelas espáduas
E suas vergonhas tão altas e tão saradinhas
Que de nós as muito olharmos
Não tínhamos nenhuma vergonha
(OSWALD DE ANDRADE, em Pau-Brasil)
Cena do filme Caramuru, a Invenção do Brasil.
Ali andavam entre eles três ou quatro moças, bem moças e bem gentis, com cabelos muito pretos, compridos pelas espáduas, e suas vergonhas tão altas, tão cerradinhas e tão limpas das cabeleiras que, de as muito bem olharmos, não tínhamos nenhuma vergonha. (CAMINHA)
Confrontando-se os textos de Oswald e Caminha, a sensação inicial é de estranhamento. O poeta modernista teria plagiado a "Carta"? Certamente não. Esse texto de Oswald é muito mais genial do que parece. O texto modernista se apropria de um fragmento da carta, disposto em verso. E... ? Até aqui nada de novo. Mas preste atenção no título: "As meninas da Gare", ou seja, as meninas da estação (de trem). Com a simples colocação desse título, Oswald empurra o texto de Caminha por mais de 400 anos, atualizando e subvertendo seu significado. O viajante, ao desembarcar na estação, encontra nossas mulheres com o corpo à mostra, disponíveis para a exploração. Trata-se de uma metáfora da prostituição do país ao longo dos séculos!
Bueno, a Carta de Caminha é apenas o primeiro capítulo de nossa viagem pela formação cultural do Brasil, mas certamente suas marcas podem ser percebidas até hoje.
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