O FANTÁSTICO NA ILHA DE SANTA CATARINA
Autor: Franklin Cascaes (1908 –
1983)
Sobre o Autor
Natural
de Itaguaçu, Franklin Joaquim Cascaes foi um autêntico depositário da Cultura
Ilhoa, pois antes de dedicar sua vida à pesquisa das tradições açorianas, viveu-as em meio à comunidade, ouvindo durante
toda a infância histórias de pescadores,
assombrações, bruxas e boitatás. Aos 21 anos, sem instrução formal, foi
descoberto o seu talento como escultor pelo professor paulista Cid da Rocha
Amaral, de quem obteve o impulso para os estudos na antiga Escola Industrial,
onde se tornaria professor.
Cascaes
testemunhou com grande sensibilidade as transformações
por que passou a Ilha de Santa Catarina a partir dos anos 40. Sua obra pode
ser entendida como uma força de resistência
da tradição, da memória e da
paisagem natural, denunciando os
males do “progresso” e da urbanização. As referências ao jogo político das elites são constantes
em “O Fantástico na Ilha de Santa Catarina”, desnudando as promessas ilusórias
feitas pelos poderosos e o descaso com os mais humildes.
O
autor foi incansável em sua pesquisa, recolhendo histórias junto a pequenos agricultores
e pescadores, reunindo mitos, lendas e imaginação em suas ilustrações,
esculturas e anotações. Seu trabalho passou a ser divulgado em meados dos anos
1970 e hoje constitui um rico acervo: a "Coleção Professora Elizabeth
Pavan Cascaes" (homenagem à esposa e maior colaboradora do trabalho do
folclorista), sob a guarda da UFSC.
Estrutura da Obra
-
São 24 narrativas bruxólicas, isto
é, que têm as bruxas como tema.
- A
maior parte das narrativas segue o seguinte formato: ´
a) Introdução no discurso do autor (linguagem padrão)
b) A narrativa em si, em que os personagens, através
do discurso direto revelam o dialeto “manezês”.
c) Um epílogo em que o autor retoma a palavra, exaltando
as belezas e mistérios da ilha, evidenciando uma relação afetiva do narrador com o espaço.
“Querida ilha de Nossa Senhora do Desterro, a madame estória popular,
que veio nos camarotes culturais junto com os ilhéus açorianos e madeirenses
que te colonizaram, são potências divinatórias do saber humano Quimérico.”
(Estado fadórico
das mulheres bruxas)
Linguagem
Sempre
atento ao falar popular dos “manezinhos”,
procurou transcrevê-lo em sua obra, adotando uma escrita fonética quando dá voz às personagens.
“- Primo Nicolau! Vossa
mecê acardita memo de vredade naquelas istória que o nosso povo lá das ihias
dos Açôri (i) contavo prá nóis como vredaderas?
- Ah!... Sim, acardito de
vredade, sim, minha prima! E inté agora me veio uma delas, no bestunto da minha
cabeça e que eu acho ela memo munto inzata. Como tu bem sabes e vancês todos
que tão aqui me osvindo, aquelas ihia dos Açôri, de ondi os nosso avó, foram sempre
munto infestada por muhié bruxa que roubam embarcação prá móde fazê viagem inté
a Índia em quatro horas; que dão nóis nos rabo e crinas dos cavalo; chupo
sangue de criancinha; intico com as pessoa grande e pratico mil malas-arte.”
(Congresso Bruxólico)
Como
revela o excerto acima, além de reproduzir a sonoridade do dialeto popular
ilhéu, o texto incorpora expressões
coloquiais como “no bestunto
da minha cabeça” (referindo-se, no caso, às capacidades mentais limitadas
do falante), que costumam ser explicadas apenas num glossário incorporado ao
final do livro.
Referências Históricas
Colonização açoriana:
“Colonizada a partir de 1748,
por colonos açorianos que habitavam aquelas ilhotas que vivem bem lá em riba da
careca do oceano, açoitados diariamente pelas ondas bravias encarneiradas do
mar e palas bocas infernais de vulcões seculares que vomitam fogo e gemem furor
incontido sobre as pobres populações. É um povo mesclado, inteligente,
audacioso, de espírito arguto e, sobretudo, essencialmente religioso e
arreigado em crendices mitológicas.”
(Eleição
bruxólica)
Índios
Observe
que num dos diálogos de “Congresso
Bruxólico”, há uma referência à presença anterior dos índios no território
colonizado. O personagem Nicolau das Venturas aborda criticamente a exploração
e a escravização dos “bugres”:
- Os bugre trabahiavo na lavoura?
- Trabahiavo, sim sinhôri, sô João, trabahiavo! Veja o sinhôri que eles
prantavam mandioca, batata, mihio, cibola, fejão e muntas otras cosas. Fazio a
cohieta e os home das otras bandas do mundo levavo tudo simbora prôs povo cumê.
Inté pexe escalado com sáli preso, eles fazio pros home de fora.
- Sô Nicolau, eu osvi falá que os bugre ero uns bicho brabo, matavo os
vivente que cahio no ôhio deles e cumio a carne muqueada com cinza.
- No mô fraco pensá, sô João, a móde que não era tanto ansim não,
proque uns fazendero de São Paulo vinho aqui, agarravo eles tudo pra móde
trabahiá nas fazendas deles quinem iscravo. Os coitado dos padre é quem
pricuravo livrá eles da iscravidão, mas num consiguio. Munto ente do povo das
ihia dos Açôri vim pra cá morá, munta água suja já tinha corrido pela aqui onde
nóis temo.
Urbanização,
Industrialização e Política
As
narrativas de “O Fantástico na Ilha de Santa Catarina” apresentam um tom nostálgico, denunciando as mudanças na paisagem.
[...] abandonaram-nos lá na única praia da Lagoa da Conceição, hoje
sepultada com barro, asfalto e lajotas [...]
(Bruxas metamorfoseadas
em bois)
Como
já foi mencionado, a política a serviço das elites urbanas é referida
criticamente nos textos de Cascaes. Nota-se o uso da expressão irônica “Madame
Política”. Nesse sentido, destaca-se o conto “Eleição Bruxólica”, em que o personagem Serafim não se deixa
enganar pelas promessas mirabolantes de uns “home rico da cidade que viéro a
pricura de enleitôri”.
Veja
que o personagem Vicente, ao contrário, estava ingenuamente deslumbrado:
Eu nunca vi uns home tão bão quinem aqueles. [...] Eles primitero inté
fazê casa de tijolo prá um pudê de gente daqui,só proque acharo essas casa de
parede de estuque munto fraca; primitero pra Ináça uma vaca que dá leite,
croste, coalhada, nata, mantega pura e quejo. Dissero que sai tudo prontinho de
dentro do ubre da vaca, sem a gente precisá se incomodá. [...]
(Eleição
Bruxólica)
Repare
como o trecho pode ser lido como uma metáfora da industrialização, colocando-se
o homem alienado à espera da satisfação de suas necessidades básicas sem mais
ter poder sobre o que consome.
Cético
quanto às promessas eleitoreiras, Serafim as relaciona com as histórias de sua
bisavó sobre as eleições das bruxas - como se também a política dos homens da
cidade fosse uma força maligna a interferir na vida dos homens.
Referências à cultura
açoriana
-
Boi-de-Mamão (referido em “Vassoura
Bruxólica”)
- Festa
do Divino Espírito Santo (referida em “Bruxas
Metamorfoseadas em Bois”)
- Pão-por-Deus
(referido em “As Bruxas e o Noivo”)
Lá vai o meu
coração
Nas asas de um
tico-tico
Pra pedir o
Pão-por-Deus
À Maria Quebra
Pinico
(As Bruxas e o Noivo)
As Bruxas
As
lendas revitalizadas por Franklin Cascaes têm como tema central a crença
popular de que muitos dos males experimentados pela população ilhoa eram
causados por bruxas.
Nos
contos de “O Fantástico na Ilha de Santa Catarina”, essas criaturas
sobrenaturais praticam diversas estripulias: aterrorizam pescadores (“Baile das Bruxas dentro de uma Tarrafa de
Pescaria”), roubam objetos (“Bruxa
metamorfoseou o sapato do Sabiano”) e embarcações (“Bruxas
roubam lancha baleeira de um pescador”), dão nós em rabos e crinas de
cavalos (“Mulheres Bruxas Atacam
Cavalos”), fazem viagens noturnas em vassouras ou em outros objetos, podem
metamorfosear-se e até ficar invisíveis, mas o pior de seus hábitos é atacar
criancinhas para chupar-lhes todo o sangue, até a morte. Em muitas histórias,
pais se desesperam ao ver seus filhos enfraquecidos e com manchas na pele.
Muitas vezes acreditam ser alguma doença e demoram a descobrir o
“embruxamento”.
O
mais triste dos relatos é o “Estado
Fadórico das Bruxas”, em que Elizeu tem o filho embruxado e recorre ao
curandeiro benzedor Quintino Pagajá. Diante de um pai desprevenido, que não
tinha como pagar no ato da consulta além da metade do valor estipulado, Pagajá
fez apenas a metade do ritual da benzedura e a criança acabou morrendo por
embruxamento. À noite, na frente da casa, as bruxas apareceram e Elizeu
reconheceu uma delas como uma moça a quem havia desgraçado no passado. O pai
pagou com a morte do próprio filho.
Adoradoras
do diabo, as bruxas têm uma hierarquia: em noites de sexta-feira, reúnem-se às
ordens da bruxa-chefe, a única que têm acesso direto a Lúcifer.
Há,
segundo as narrativas, dois tipos de bruxas: as terráqueas, que por opção própria decidem seguir o demônio e as bruxas espirituais, um caso muito
especial que ocorre quando um casal tem sete filhas mulheres e nenhum varão: a
sétima filha está destinada ao fado (destino) bruxólico, o que só pode ser
evitado se a menina for batizada pela irmã mais velha recebendo o nome de
Benta.
O
conto “Bruxas Gêmeas” trata
justamente disso, mas com o agravante de ter sido o sétimo parto da mulher de
Manoel Braseiro o nascimento de irmãs gêmeas. Sem saber qual das duas era a
sétima, o pai pede ajuda à benzedeira Sinhá Candinha, que, enganada por
Lúcifer, diagnostica por erro, a menina chamada Santa como a sétima, quando na
verdade era a outra, a Benta, aquela fadada à bruxaria. Mais tarde a verdade é
descoberta, quando Benta é desmascarada por uma curandeira após “embruxar” um
bebê.
Quanto
ao aspecto físico, a maioria das bruxas
de Franklin Cascaes é representada de forma asquerosa. Gostam de fumar,
soltam fumaça pelo nariz e pelas orelhas e costumam ser peludas. No entanto, é possível que algumas exerçam
atração erótica sobre os homens. Veja a descrição de Isidora no conto “A Bruxa Mamãe”
A Isidora Fumadeira até que não era uma moça muito feia nem deseducada.
Gostava muito de fumar cigarros papa-terra [...]. Também tinha o hábito de
mascar fumo e cheirar rapé. Não gostava de usar roupas femininas, e o prazer
dela era vestir as roupas do irmão mais velho.[...]
Os moços de sua comunidade não gostavam de namorar com ela pela razão
de ser muito autoritária e mandona.
Romualdo
se apaixona pela moça:
Ela parece ser machona – pensou ele – mas tem os peitos muito
salientes!
Os
dois casam e têm filhas (gêmeas). Logo em seguida, Isidora passa a abandonar o
lar para viver suas aventuras bruxólicas à noite. Certa vez, é vista pelas
filhas metamorfoseando-se em morcego. Romualdo, em desespero, procura uma
benzedeira que termina por desmascarar a “mulher bruxa machorra” e suas
companheiras.
Observe
que, assim como a urbanização da paisagem é vista como uma espécie de
“embruxamento” de que sofre a Ilha, a modernização dos costumes também é
associada à bruxaria. São exemplos a mulher insubmissa, masculinizada como
Isidora da narrativa anterior ou a personagem Irineia, do conto “Madame Bruxólica e o Saci-Pererê” com
seus hábitos da cidade:
A Irineia, cada vez que vinha na cidade, aparecia no sítio onde morava
desfilando as modas jovens que copiava, até bem mal, de mulheres vaidosas,
embonecadas e retorcidas. Ora aparecia com um vestido tão curto, que a bainha
lhe alcançava a cintura; ora aparecia com um vestido tão comprido, que chegava
a varrer os ciscos por onde ela passava.[...]
As tais modas [...] escandalizavam as mulheres antigas [...].
O Bento Leandro [...] até que apreciava muito, principalmente quando
ela se apresentava bem ensacada dentro de uma calça de brim bem descorado,
exibindo seu par de nádegas calipigianamente avantajadas aos olhos esbugalhados
da população da comunidade dela.
Nesse
conto, a bruxa, que já despertava suspeitas sobre seu comportamento, ao ver um
“gato preto meio pintado de vermelho” (Saci-Pererê), decide, num impulso montar
sobre ele para viajar a toda velocidade a caçar discos voadores:
“Viajei bruxolicamente, e tudo o que encontrei ocupando os espaços
siderais catarinenses em matéria de discos voadores é digno do mais alto pode
científico que a humanidade alcançou até os dias de hoje.“
Ao
final, a mulher perde o encantamento bruxólico por ter desobedecido as ordens
de Lúcifer (excedeu-se em seu tempo de viagem espacial).
Observe
que, além do comportamento “urbanizado”, Irineia é transgressora porque busca o
conhecimento.
Bruxas x Curandeiros
No
conto “Congresso Bruxólico”, o personagem Nicolau, perguntado sobre a diferença
entre bruxas e feiticeiras, diz que as primeiras têm sina maligna e as últimas
procuram fazer o bem com remédios e benzeduras, assim como os curandeiros,
verdadeiros “dotôri”.
Veja
a importância dos curandeiros para a população que vivia em comunidades
privadas de serviços básicos de saúde:
Nesses tempos longínquos, na “Vila Capitáli” nem havia doutores de dar
remédios. [...] Ora, em situações de desespero, com relação a doenças que
corroíam o organismo até dá-lo à morte, o jeito mesmo era recorrer a Deus e aos
santos e, consequentemente aos benzedores e curandeiristas que existiam e ainda
existem entre as populações [...]
(Bruxa
metamorfoseou o sapato do Sabiano)
A maioria dos curandeiros
apenas pratica o bem, sem se importar com a remuneração, mas em alguns casos,
há benzedores “dinheiristas”, como o velho Quintino Pagajá do conto “Estado Fadórico das Mulheres Bruxas”.