segunda-feira, 24 de março de 2008

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sexta-feira, 21 de março de 2008

Prova da UFRGS valoriza o candidato que lê

O título dessa postagem pode parecer uma afirmação óbvia... Mas a verdade é que existem várias formas de seleção, e cada uma delas privilegia um determinado perfil de candidato. Questões dissertativas sempre constituem um espaço privilegiado para avaliar não só o volume de "conhecimento" acumulado pelo candidato, mas a verdadeira capacidade de processar criticamente essas informações. É realmente problemático mensurar as habilidades dos pré-universitários no campo das ciências humanas facultando-lhes apenas uma possibilidade de resposta exata.Nos vestibulares, a prova de Redação é esse instrumento avaliativo que possibilita ao candidato diferenciar-se dos demais, elaborando suas respostas com autonomia. Infelizmente, são poucas as universidades que ainda propõem questões discursivas além da tradicional Redação (a Unicamp é uma referência nacional, e aqui no RS ainda temos a FURG como exemplo).


Bueno, mas que tipo de leitor nossas universidades vêm selecionando? Nossas provas de Literatura, nos tradicionais moldes "objetivos", seguramente são insuficientes para promover uma seleção criteriosa, que leve em conta o fato de o candidato realmente ter tido uma bagagem literária. Seria hipocrisia desconsiderar o fato de que boa parte dos que conseguem uma vaga na universidade o fizeram com desempenhos "razoáveis" em Literatura graças aos resumos que digeriram. Assim, a elite cultural do país se forma lendo "Veja" e "IstoÉ" (leituras que, se feitas de forma incauta, podem trazer danos irreversíveis a qualquer um).

Mas haveria alguma proposta viável para alterar esse quadro? A UFRGS, que realiza o maior processo seletivo do RS, é tomada como referência em todo o Estado. Nesse sentido, é extremamente animadora a perspectiva gerada pelo vestibular 2008:


A proposta de redação da UFRGS foi, na modesta opinião deste professor, a melhor avaliação de Literatura dos últimos concursos vestibulares.


*envie um e-mail para clubedeliteratura@hotmail.com para obter informações sobre a "REDAÇÃO COMENTADA".



segunda-feira, 17 de março de 2008

Entre a ficção e a realidade - Coletânea de textos

"A Diferença Entre a Verdade e a Ficção - A Ficção tem que fazer sentido." (Mark Twain)


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"A vida é uma simples sombra que passa (...); é uma história contada com som e fúria por um idiota, e sem sentido algum".

(Sakespeare).
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Continuidade dos Parques

Havia começado a ler o romance uns dias antes. Abandonou-o por negócios urgentes, voltou a abri-lo quando regressava de trem à chácara; deixava interessar-se lentamente pela trama, pelo desenho dos personagens. Essa tarde, depois de escrever uma carta ao caseiro e discutir com o mordomo uma questão de uns arrendamentos, voltou ao livro com a tranqüilidade do gabinete que dava para o parque dos carvalhos. Esticado na poltrona favorita, de costas para a porta que o teria incomodado com uma irritante possibilidade de intrusões, deixou que sua mão esquerda acariciasse uma e outra vez o veludo verde, e começou a ler os últimos capítulos. Sua memória retinha sem esforço os nomes e as imagens dos protagonistas; a ilusão romanesca ganhou-o quase imediatamente. Gozava do prazer quase perverso de ir descolando-se linha a linha daquilo que o rodeava, e de sentir ao mesmo tempo que sua cabeça descansava comodamente no veludo do alto encosto, que os cigarros continuavam ao alcance da mão, que mais além das janelas dançava o ar do entardecer sob os carvalhos. Palavra a palavra, absorvido pela sórdida disjuntiva dos heróis, deixando-se ir até as imagens que se combinavam e adquiriam cor e movimento, foi testemunha do último encontro na cabana da colina.

Antes entrava a mulher, receosa; agora chegava o amante, com a cara machucada pela chicotada de um galho. Admiravelmente ela fazia estalar o sangue com seus beijos, mas ele recusava as carícias, não tinha vindo para repetir as cerimônias de uma paixão secreta, protegida por um mundo de folhas secas e caminhos furtivos. O punhal se amornava contra seu peito e por baixo gritava a liberdade refugiada. Um diálogo desejante corria pelas páginas como riacho de serpentes e sentia-se que tudo estava decidido desde sempre. Até essas carícias que enredavam o corpo do amante como que querendo retê-lo e dissuadi-lo desenhavam abominavelmente a figura de outro corpo que era necessário destruir. Nada havia sido esquecido: álibis, acasos, possíveis erros. A partir dessa hora cada instante tinha seu emprego minuciosamente atribuído. O duplo repasse, sem dó nem piedade, interrompia-se apenas para que uma mão acariciasse uma bochecha. Começava a anoitecer.

Já sem se olharem, atados rigidamente à tarefa que os esperava, separaram-se na porta da cabana. Ela devia continuar pelo caminho que ia ao norte. Do caminho oposto, ele virou um instante para vê-la correr com o cabelo solto. Correu, por sua vez, apoiando-se nas árvores e nas cercas, até distinguir na bruma do crepúsculo a alameda que levava à casa. Os cachorros não deviam latir e não latiram. O mordomo não estaria a essa hora, e não estava. Subiu os três degraus da varanda e entrou. Do sangue galopando nos seus ouvidos chegavam-lhe as palavras da mulher: primeiro uma sala azul, depois um longo corredor, uma escada acarpetada. No alto, duas portas. Ninguém no primeiro quarto, ninguém no segundo. A porta do salão, e depois o punhal na mão, a luz das janelas, o alto encosto de uma poltrona de veludo verde, a cabeça do homem na poltrona lendo um romance.

(Julio Cortázar)

...


A Caçada

A loja de antiguidades tinha o cheiro de uma arca de sacristia com seus anos embolorados e livros comidos de traça. Com as pontas dos dedos, o homem tocou numa pilha de quadros. Uma mariposa levantou vôo e foi chocar-se contra uma imagem de mãos decepadas.



— Bonita imagem — disse ele.
A velha tirou um grampo do coque, e limpou a unha do polegar. Tornou a enfiar o grampo no cabelo.
— É um São Francisco.
Ele então voltou-se lentamente para a tapeçaria que tomava toda a parede no fundo da loja. Aproximou-se mais. A velha aproximou-se também.
— Já vi que o senhor se interessa mesmo é por isso... Pena que esteja nesse estado.
O homem estendeu a mão até a tapeçaria, mas não chegou a tocá-la.
— Parece que hoje está mais nítida...
— Nítida? — repetiu a velha, pondo os óculos.
Deslizou a mão pela superfície puída.
— Nítida, como?
— As cores estão mais vivas. A senhora passou alguma coisa nela?
A velha encarou-o. E baixou o olhar para a imagem de mãos decepadas. O homem estava tão pálido e perplexo quanto a imagem.
— Não passei nada, imagine... Por que o senhor pergunta?
— Notei uma diferença.
— Não, não passei nada, essa tapeçaria não agüenta a mais leve escova, o senhor não vê? Acho que é a poeira que está sustentando o tecido acrescentou, tirando novamente o grampo da cabeça.
Rodou-o entre os dedos com ar pensativo. Teve um muxoxo:
— Foi um desconhecido que trouxe, precisava muito de dinheiro. Eu disse que o pano estava por demais estragado, que era difícil encontrar um comprador, mas ele insistiu tanto... Preguei aí na parede e aí ficou. Mas já faz anos isso. E o tal moço nunca mais me apareceu.
— Extraordinário...
A velha não sabia agora se o homem se referia à tapeçaria ou ao caso que acabara de lhe contar. Encolheu os ombros. Voltou a limpar as unhas com o grampo.
— Eu poderia vendê-la, mas quero ser franca, acho que não vale mesmo a pena. Na hora que se despregar, é capaz de cair em pedaços.
O homem acendeu um cigarro. Sua mão tremia. Em que tempo, meu Deus! em que tempo teria assistido a essa mesma cena. E onde?...Era uma caçada. No primeiro plano, estava o caçador de arco retesado, apontando para uma touceira espessa. Num plano mais profundo, o segundo caçador espreitava por entre as árvores do bosque, mas esta era apenas uma vaga silhueta, cujo rosto se reduzira a um esmaecido contorno. Poderoso, absoluto era o primeiro caçador, a barba violenta como um bolo de serpentes, os músculos tensos, à espera de que a caça levantasse para desferir-lhe a seta.O homem respirava com esforço. Vagou o olhar pela tapeçaria que tinha a cor esverdeada de um céu de tempestade. Envenenando o tom verde-musgo do tecido, destacavam-se manchas de um negro-violáceo e que pareciam escorrer da folhagem, deslizar pelas botas do caçador e espalhar-se no chão como um líquido maligno. A touceira na qual a caça estava escondida também tinha as mesmas manchas e que tanto podiam fazer parte do desenho como ser simples efeito do tempo devorando o pano.
— Parece que hoje tudo está mais próximo — disse o homem em voz baixa.
— É como se... Mas não está diferente?A velha firmou mais o olhar. Tirou os óculos e voltou a pô-los.
— Não vejo diferença nenhuma.— Ontem não se podia ver se ele tinha ou não disparado a seta...
— Que seta? O senhor está vendo alguma seta?
— Aquele pontinho ali no arco... A velha suspirou.
— Mas esse não é um buraco de traça? Olha aí, a parede já está aparecendo, essas traças dão cabo de tudo — lamentou, disfarçando um bocejo. Afastou-se sem ruído, com suas chinelas de lã. Esboçou um gesto distraído:
— Fique aí à vontade, vou fazer meu chá.
O homem deixou cair o cigarro. Amassou-o devagarinho na sola do sapato. Apertou os maxilares numa contração dolorosa. Conhecia esse bosque, esse caçador, esse céu — conhecia tudo tão bem, mas tão bem! Quase sentia nas narinas o perfume dos eucaliptos, quase sentia morder-lhe a pele o frio úmido da madrugada, ah, essa madrugada! Quando? Percorrera aquela mesma vereda aspirara aquele mesmo vapor que baixava denso do céu verde... Ou subia do chão? O caçador de barba encaracolada parecia sorrir perversamente embuçado. Teria sido esse caçador? Ou o companheiro lá adiante, o homem sem cara espiando por entre as árvores? Uma personagem de tapeçaria. Mas qual? Fixou a touceira onde a caça estava escondida. Só folhas, só silêncio e folhas empastadas na sombra. Mas, detrás das folhas, através das manchas pressentia o vulto arquejante da caça. Compadeceu-se daquele ser em pânico, à espera de uma oportunidade para prosseguir fugindo. Tão próxima a morte! O mais leve movimento que fizesse, e a seta... A velha não a distinguira, ninguém poderia percebê-la, reduzida como estava a um pontinho carcomido, mais pálido do que um grão de pó em suspensão no arco.Enxugando o suor das mãos, o homem recuou alguns passos. Vinha-lhe agora uma certa paz, agora que sabia ter feito parte da caçada. Mas essa era uma paz sem vida, impregnada dos mesmos coágulos traiçoeiros da folhagem. Cerrou os olhos. E se tivesse sido o pintor que fez o quadro? Quase todas as antigas tapeçarias eram reproduções de quadros, pois não eram? Pintara o quadro original e por isso podia reproduzir, de olhos fechados, toda a cena nas suas minúcias: o contorno das árvores, o céu sombrio, o caçador de barba esgrouvinhada, só músculos e nervos apontando para a touceira... "Mas se detesto caçadas! Por que tenho que estar aí dentro?" Apertou o lenço contra a boca. A náusea. Ah, se pudesse explicar toda essa familiaridade medonha, se pudesse ao menos... E se fosse um simples espectador casual, desses que olham e passam? Não era uma hipótese? Podia ainda ter visto o quadro no original, a caçada não passava de uma ficção. "Antes do aproveitamento da tapeçaria..." — murmurou, enxugando os vãos dos dedos no lenço.Atirou a cabeça para trás como se o puxassem pelos cabelos, não, não ficara do lado de fora, mas lá dentro, encravado no cenário! E por que tudo parecia mais nítido do que na véspera, por que as cores estavam mais fortes apesar da penumbra? Por que o fascínio que se desprendia da paisagem vinha agora assim vigoroso, rejuvenescido?...

Saiu de cabeça baixa, as mãos cerradas no fundo dos bolsos. Parou meio ofegante na esquina. Sentiu o corpo moído, as pálpebras pesadas. E se fosse dormir? Mas sabia que não poderia dormir, desde já sentia a insônia a segui-lo na mesma marcação da sua sombra. Levantou a gola do paletó. Era real esse frio? Ou a lembrança do frio da tapeçaria? "Que loucura!... E não estou louco", concluiu num sorriso desamparado. Seria uma solução fácil. "Mas não estou louco.".Vagou pelas ruas, entrou num cinema, saiu em seguida e quando deu acordo de si, estava diante da loja de antiguidades, o nariz achatado na vitrina, tentando vislumbrar a tapeçaria lá no fundo.Quando chegou em casa, atirou-se de bruços na cama e ficou de olhos escancarados, fundidos na escuridão. A voz tremida da velha parecia vir de dentro do travesseiro, uma voz sem corpo, metida em chinelas de lã: "Que seta? Não estou vendo nenhuma seta..." Misturando-se à voz, veio vindo o murmurejo das traças em meio de risadinhas. O algodão abafava as risadas que se entrelaçaram numa rede esverdinhada, compacta, apertando-se num tecido com manchas que escorreram até o limite da tarja. Viu-se enredado nos fios e quis fugir, mas a tarja o aprisionou nos seus braços. No fundo, lá no fundo do fosso, podia distinguir as serpentes enleadas num nó verde-negro. Apalpou o queixo. "Sou o caçador?" Mas ao invés da barba encontrou a viscosidade do sangue.Acordou com o próprio grito que se estendeu dentro da madrugada. Enxugou o rosto molhado de suor. Ah, aquele calor e aquele frio! Enrolou-se nos lençóis. E se fosse o artesão que trabalhou na tapeçaria? Podia revê-la, tão nítida, tão próxima que, se estendesse a mão, despertaria a, folhagem. Fechou os punhos. Haveria de destruí-la, não era verdade que além daquele trapo detestável havia alguma coisa mais, tudo não passava de um retângulo de pano sustentado pela poeira. Bastava soprá-la, soprá-la!

Encontrou a velha na porta da loja. Sorriu irônica: — Hoje o senhor madrugou.— A senhora deve estar estranhando, mas...
— Já não estranho mais nada, moço. Pode entrar, pode entrar, o senhor conhece o caminho..."Conheço o caminho" — murmurou, seguindo lívido por entre os móveis. Parou. Dilatou as narinas. E aquele cheiro de folhagem e terra, de onde vinha aquele cheiro? E por que a loja foi ficando embaçada, lá longe? Imensa, real só a tapeçaria a se alastrar sorrateiramente pelo chão, pelo teto, engolindo tudo com suas manchas esverdinhadas. Quis retroceder, agarrou-se a um armário, cambaleou resistindo ainda e estendeu os braços até a coluna. Seus dedos afundaram por entre galhos e resvalaram pelo tronco de uma árvore, não era uma coluna, era uma árvore! Lançou em volta um olhar esgazeado: penetrara na tapeçaria, estava dentro do bosque, os pés pesados de lama, os cabelos empastados de orvalho. Em redor, tudo parado. Estático. No silêncio da madrugada, nem o piar de um pássaro, nem o farfalhar de uma folha. Inclinou-se arquejante. Era o caçador? Ou a caça? Não importava, não importava, sabia apenas que tinha que prosseguir correndo sem parar por entre as árvores, caçando ou sendo caçado. Ou sendo caçado?... Comprimiu as palmas das mãos contra a cara esbraseada, enxugou no punho da camisa o suor que lhe escorria pelo pescoço. Vertia sangue o lábio gretado.Abriu a boca. E lembrou-se. Gritou e mergulhou numa touceira. Ouviu o assobio da seta varando a folhagem, a dor!"Não..." - gemeu, de joelhos. Tentou ainda agarrar-se à tapeçaria. E rolou encolhido, as mãos apertando o coração.

(Lygia Fagundes Telles)
Publicado no livro "Antes do baile verde", José Olympio Editora – Rio de Janeiro, 1979, foi incluído entre "Os cem melhores contos brasileiros do século", seleção de Ítalo Moriconi, Editora Objetiva – Rio de Janeiro, 2000, pág. 265.

...

O Ator
O homem chega em casa, abre a porta e é recebido pela mulher e os dois
filhos, alegremente. Distribui beijos entre todos, pergunta o que há para
jantar e dirige-se para o seu quarto. Vai tomar um banho, trocar de roupa e
preparar-se para algumas horas de sossego na frente da televisão antes de
dormir. Quando está abrindo a porta do seu quarto, ouve uma voz que grita:
- Corta!
O homem olha em volta, atônito. Descobre que sua casa não é uma casa, é
um cenário. Vem alguém e tira o jornal e a pasta das suas mãos. Uma mulher
vem ver se a sua maquilagem está bem e põe um pouco de pó no seu nariz.
Aproxima-se um homem com um script na mão dizendo que ele errou uma
das falas na hora de beijar as crianças.
- O que é isso? - pergunta o homem. - Quem são vocês? O que estão fazendo
dentro da minha casa? Que luzes são essas?
- O que, enlouqueceu? - pergunta o diretor. - Vamos ter que repetir a cena.
Eu sei que você está cansado, mas...
- Estou cansado, sim senhor. Quero tomar meu banho e botar meu pijama.
Saiam da minha casa. Não sei quem são vocês, mas saiam todos! Saiam!
O diretor fica parado de boca aberta. Toda a equipe fica em silêncio, olhando
para o ator. Finalmente o diretor levanta a mão e diz:
- Tudo bem, pessoal. Deve ser estafa. Vamos parar um pouquinho e...
- Estafa coisa nenhuma! Estou na minha casa, com a minha... A minha
família! O que vocês fizeram com ela? Minha mulher! Os meus filhos!
O homem sai correndo entre os fios e os refletores, à procura da família. O
diretor e um assistente tentam segurá-lo. E então ouve-se uma voz que grita:
- Corta!
Aproxima-se outro homem com um script na mão descobre que o cenário, na
verdade, é um cenário. O homem com um script na mão diz:
- Está bom, mas acho que você precisa ser mais convincente.
- Que-quem é você?
- Como, quem sou eu? Eu sou o diretor. Vamos refazer esta cena. Você tem
que transmitir melhor o desespero do personagem. Ele chega em casa e
descobre que sua casa não é uma casa, é um cenário. Descobre que está no
meio de um filme. Não entende nada.
- Eu não entendo...
- Fica desconcertado. Não sabe se enlouqueceu ou não.
- Eu devo estar louco. Isto não pode estar acontecendo. Onde está minha
mulher? Os meus filhos? A minha casa?
- Assim está melhor. Mas espere até começarmos a rodar. Volte para a sua
marca. Atenção, luzes...
- Mas que marca? Eu não sou personagem nenhum. Eu sou eu! Ninguém me
dirige. Eu estou na minha própria casa, dizendo as minhas próprias falas...
- Boa, boa. Você está fugindo um pouco do script, mas está bom.
- Que script? Não tem script nenhum. Eu digo o que quiser. Isto não é um
filme. E mais, se é um filme,
é uma porcaria de filme. Isto é simbolismo,ultrapassado. Essa de que o
mundo é um palco, que tudo foi predeterminado, que não somos mais do que
atores... Porcaria!
- Boa, boa. Está convincente. Mas espere começar a filmar. Atenção...
O homem agarra o diretor pela frente da camisa.
- Você não vai filmar nada! Está ouvindo? Nada! Saia da minha casa.
O diretor tenta livrar-se. Os dois rolam pelo chão. Nisto ouvese uma voz que
grita:
- Corta!

(Luís Fernando Veríssimo)

sexta-feira, 14 de março de 2008

A Carta de Caminha e a carnavalização do Brasil

Pensando sobre a imagem que temos de vários povos do mundo, facilmente elencamos qualidades positivas, como a pontualidade britânica, a inteligência e capacidade de trabalho dos japoneseses, e assim por diante...

E quanto a nós, brasileiros? Muitos se referem à malandragem, ao popular jeitinho brasileiro (e olha que trabalhamos 4 ou 5 meses dos 12 do ano só para pagar impostos). Mas sem dúvida, a tríade samba, mulher e futebol é a nossa auto-imagem campeã. Em suma, não produzimos nada, mas podemos entreter o resto do mundo com nossa "alegria". Mas afinal, onde começa essa história?

Durante séculos, a literatura foi exclusiva na formação de nossa subjetividade, de nosso inconsciente coletivo. Um grande repositório de nossas idéias, inclusive sobre aquilo que nós somos ou julgamos ser. E o primeiro capítulo dessa história é o que alguns chamam de "certidão de nascimento do Brasil".

O Quinhentismo


O Quinhentismo foi vivido no Brasil em meio ao “descobrimento” e aos interesses da exploração de riquezas materiais. Não se pode falar, propriamente, em Literatura Brasileira, uma vez que os textos da época somente atendem ao ponto de vista do colonizador, pois todos os autores (e potenciais leitores) são europeus. Além disso, predominam na época os relatos de viagem, textos informativos, de caráter documental e, portanto, com maior valor histórico do que literário. Mesmo assim, esses textos são chamados de Literatura de Informação.



Carta a El-Rei Dom Manuel sobre o achamento do Brasil

A famosa Carta de Pero Vaz de Caminha, escrita entre 26 de abril de e 1º de maio de 1500, tinha como objetivo informar ao rei de Portugal o descobrimento e relatar-lhe as peculiaridades do novo território. É tida como uma espécie de “certidão de nascimento” do Brasil (expressão que adere ao ponto de vista do colonizador). Na verdade, é o primeiro retrato de nossa terra e, mesmo passados mais de quinhentos anos, ainda é bastante revelador de marcas profundas na formação de nossa identidade enquanto povo.



Aspectos importantes:

Descritivismo

Tudo na Carta é descrito nos mínimos detalhes. Repare como o índio é analisado como mais um elemento integrante da natureza exótica do local:

A feição deles é parda, algo avermelhada; de bons rostos e bons narizes. Em geral, são bem feitos. Andam nus, sem cobertura alguma. Não fazem o menor caso de cobrir ou mostrar suas vergonhas, e nisso são tão inocentes como quando mostram o rosto. Ambos traziam os beiço de baixo furado e metido nele um osso branco, do comprimento de uma mão travessa e da grossura de um fuso de algodão.


Choque cultural e Origens do estigma da sensualidade brasileira

O trecho acima já revela o choque entre os tabus religiosos do europeu e a nudez dos nativos. Na verdade, a atmosfera edênica fascina os portugueses, e esse registro na Carta começa a forjar uma imagem do Brasil associada à liberdade sexual. Observe o excerto abaixo:


Ali andavam entre eles três ou quatro moças, muito novas e muito gentis, com cabelos muito pretos e compridos, caídos pelas espáduas, e suas vergonhas tão altas e tão cerradinhas e tão limpas das cabeleiras que, de as muito bem olharmos, não tínhamos nenhuma vergonha.



Visão paradisíaca, Concepção mercantilista e colonizadora e Ideal salvacionista


Corroborando a idéia de que o Brasil seria o "eldorado", paraíso perdido na América, a natureza exuberante, exótica e inexplorada é vista com fascínio.



A terra por cima é toda chã e muito cheia de grandes arvoredos. De ponta a ponta é tudo praia redonda, muito chã e muito formosa. [...]



Sem dúvida, a serviço da Coroa, Caminha não poderia deixar de registrar a preocupação em encontrar metais preciosos. Não logrando êxito nesse intento num primeiro instante (o surto aurífero só vai ocorrer no século XVIII, em Minas Gerais), o escrivão sugere insistentemente as potencialidades naturais do local e sugere sua colonização:



Nela até agora não pudemos saber que haja ouro, nem prata, nem coisa alguma de metal ou ferro; nem o vimos. Porém, a terra em si é de muito bons ares, assim frios e temperados, como os de Entre-Douro e Minho, porque neste tempo de agora os achávamos como os de lá.
As águas são muitas e infindas. E em tal maneira é graciosa que, querendo aproveitá-la, tudo dará nela, por causa das águas que tem.
Porém, o melhor fruto que dela se pode tirar me parece que será salvar esta gente. E esta deverá ser a principal semente que Vossa Alteza nela deve lançar.



A Herança Literária da Carta


Além desses caracteres que analisamos acima, a literatura informativa emprestou muitos de seus temas e formas para períodos literários posteriores, em especial para o Romantismo (indianismo, fundação da nacionalidade) e para o Modernismo (revisão crítica da identidade nacional).
O poeta modernista Oswald de Andrade realizou apropriações parodísticas da carta, subvertendo seu sentido ao recortar as frases do texto original, dispondo-as de outra maneira.

As Meninas da Gare
Eram três ou quatro moças bem moças e bem gentis
Com cabelos mui pretos pelas espáduas
E suas vergonhas tão altas e tão saradinhas
Que de nós as muito olharmos
Não tínhamos nenhuma vergonha
(OSWALD DE ANDRADE, em Pau-Brasil)
Cena do filme Caramuru, a Invenção do Brasil.
Ali andavam entre eles três ou quatro moças, bem moças e bem gentis, com cabelos muito pretos, compridos pelas espáduas, e suas vergonhas tão altas, tão cerradinhas e tão limpas das cabeleiras que, de as muito bem olharmos, não tínhamos nenhuma vergonha. (CAMINHA)



Confrontando-se os textos de Oswald e Caminha, a sensação inicial é de estranhamento. O poeta modernista teria plagiado a "Carta"? Certamente não. Esse texto de Oswald é muito mais genial do que parece. O texto modernista se apropria de um fragmento da carta, disposto em verso. E... ? Até aqui nada de novo. Mas preste atenção no título: "As meninas da Gare", ou seja, as meninas da estação (de trem). Com a simples colocação desse título, Oswald empurra o texto de Caminha por mais de 400 anos, atualizando e subvertendo seu significado. O viajante, ao desembarcar na estação, encontra nossas mulheres com o corpo à mostra, disponíveis para a exploração. Trata-se de uma metáfora da prostituição do país ao longo dos séculos!


Bueno, a Carta de Caminha é apenas o primeiro capítulo de nossa viagem pela formação cultural do Brasil, mas certamente suas marcas podem ser percebidas até hoje.

Download da Carta de Caminha (texto integral)

quarta-feira, 12 de março de 2008

Questões de Lingüística

Qual é a relação entre língua, pensamento e cultura?
Para responder a esse questionamento, faz-se necessário, primeiramente, tomarmos como referência um conceito de língua. Nas palavras de Saussure, a língua seria “produto social da faculdade da linguagem e um conjunto de convenções necessárias, adotadas pelo corpo social para permitir o exercício dessa faculdade nos indivíduos". Assim, a linguagem constitui-se como faculdade inerente à condição humana, um conceito mais amplo em que está contida a noção de língua.
Aqui faz-se necessário buscar o processo histórico de construção do ser humano enquanto tal, o processo de hominização. Resumida e simplificadamente, podemos afirmar que, com a aquisição da postura ereta, deu-se a sofisticação do aparelho vocal, e a ampliação da caixa craniana. Esses dois fatores permitem, respectivamente, a emissão de sons mais elaborados e a ampliação da capacidade de armazenamento e processamento de informações (o que lhe faculta não somente reagir ao presente, mas reelaborar seu passado e projetar seu futuro). Imaginemos que esse hominídeo, ao esticar-se e pegar (“pinçar” com seu polegar opositor) um fruto pode visualizá-lo (visão focalizante) e, identificá-lo com sua imagem, atribuindo-lhe um símbolo, que será armazenado na memória. Assim se dá o desenvolvimento do pensamento, umbilicalmente relacionado à linguagem: o homem vai atribuindo significado à realidade que o cerca, “nomeando” as coisas (relação significante/significado). É claro que esse “nomear”, inicialmente se utiliza de signos imagéticos, mas esse processo de abstração vai se elaborando até chegarmos à linguagem verbal.
Como vimos, o homem organiza a realidade que o cerca e atribui-lhe significado a partir da linguagem. Esta é a capacidade inata do ser humano de indicar as coisas, de expressar suas idéias, valores e sentimentos, e de comunicar-se com seu semelhante. Sabemos, porém, que inúmeras são as possibilidades de se configurar a realidade de um grupo social. Diferentes realidades físicas, geográficas e socioculturais se manifestam em códigos peculiares: as línguas como produto social da linguagem.
Nesse diapasão, a cultura, concebida como a produção e a transmissão do conhecimento da experiência humana, relaciona-se diretamente com a linguagem. É a partir dela que o grupo social apreende o mundo. Em contrapartida, é a partir da língua, esse sistema que diz respeito ao grupo (comunidade lingüística), que a realidade adquire significado e se ressignifica. É na teia da língua que se estabelecem as relações do homem com o meio e as interações sociais, as relações políticas. Em outras palavras: as relações de poder do homem sobre a natureza e do homem sobre seu semelhante.

Existe uma linguagem animal?
Já vimos a linguagem como um atributo humano, essencialmente ligado ao próprio processo de hominização. Todavia, são freqüentes os questionamentos em torno de uma “linguagem animal”. Indubitavelmente, os animais estabelecem comunicação entre si. Emitem sinais para defender seu território, por exemplo, e se fazem “entender”. Esses sinais podem, inclusive, compor um sistema de surpreendente complexidade, como aquele revelado no célebre estudo de Karl von Frisch, sobre a comunicação das abelhas, que sinalizam a localização do alimento de acordo com um variado repertório de movimentos no ar. Mas então, o que diferencia a linguagem humana da comunicação estabelecida entre os demais animais? A “linguagem animal” é instintiva, funcionando em uma cadeia de estímulos e respostas. Não sendo dotada de variabilidade, não evolui, não se transforma. Já o homem, podemos dizer com base no raciocínio explicitado na questão anterior, produz linguagem: o sistema comunicacional humano envolve a interação, o posicionamento de um sujeito em relação ao outro e a consciência do ato comunicativo. Assim, a linguagem humana pode processar-se sobre a própria linguagem. Um homem pode fazer referência à fala de outro homem, não se limitando apenas à reação imediata aos estímulos do meio. Se um homem disser: “eu vejo o horizonte”, um segundo homem poderá dizer sobre aquele: “Ele vê o horizonte”.
A linguagem, em sentido estrito, é, portanto, um fenômeno humano. É, ao mesmo tempo, um sistema, o meio através do qual se descreve e interpreta a realidade e, fundamentalmente, uma prática social concreta.

quarta-feira, 5 de março de 2008

Álvares de Azevedo morre!

O estilo gótico como rejeição aos padrões sociais de comportamento vem conquistando a juventude ao longo dos séculos, desde Mary Shelley (Frankenstein) e Bram Stoker (Drácula). O decadentismo e o desajuste em relação aos valores vigentes assumiram formas contemporâneas com o punk, o dark e o metal, e até mesmo o romantismo mais ingênuo é vivido hoje pela tribo "emo". Não é espantoso, portanto, que nenhum autor do século XIX desperte tanto interesse na gurizada de hoje como Álvares de Azevedo. O Satanismo e a morbidez de Macário e, principalmente, de Noite na Taverna, são alimento para a imaginação mais delirante. Mas as poesias de amor, do desejo irrealizado, da dificuldade adolescente em aproximar-se do sexo oposto também atraem o jovem leitor. A própria biografia do poeta é repleta de mitos e curiosidades. Alguns afirmam que ele teria nascido no salão da Biblioteca da Faculdade de Direito em São Paulo. Conta-se também que ele, por sugestão dos amigos, tendo já uma aparência cadavérica, teria simulado o próprio velório no saguão da faculdade para que a turma arrecadasse dinheiro para a boemia. Muitos contestam essa fama de boêmio com o argumento de que, dada a esquisitice de Azevedo, ele teria morrido virgem. Mas o certo é que ele, como outros gênios da época, morreu cedo, aos 21 anos. Mas sua obra ficou imortalizada e fortemente identificada com a juventude. Tanto que eu poderia dizer: Álvares de Azevedo ainda vive! Mas, considerando-se a obsessão do poeta pela morte...

Duas boas pedidas então:

"A moça revivia a pouco e pouco. Ao acordar, desmaiara. Embucei-me na capa e tomei-a nos braços coberta com seu sudário, como uma criança. Ao aproximar-me da porta, topei num corpo. Abaixei-me e olhei: era algum coveiro do cemitério da igreja, que aí dormira de ébrio, esquecido de fechar a porta...
Saí. Ao passar a praça encontrei uma patrulha.


- Que levas aí?

A noite era muito alta: talvez me cressem um ladrão.

- É minha mulher, que vai desmaiada...

- Uma mulher? Mas, essa roupa branca e longa? Serás, acaso, roubador de cadáveres?

Um guarda aproximou-se. Tocou-lhe a fronte: era fria.

- É uma defunta

Cheguei meus lábios aos dela. Senti um bafejo morno. - Era a vida, ainda."
.....................................................................................................
“Nos mesmos lábios onde suspirava a monodia (canto uníssono) amorosa, vem a sátira que morde” . Assim o próprio Álvares de Azevedo define sua obra, dividindo-a em duas facetas uma de confessionalismo amoroso juvenil e outra de ironia e sarcasmo.
A obra se divide em três partes. A primeira e a terceira parte da obra são marcadas pelo sentimentalismo e pelo egocentrismo típicos de sua geração. Em textosa como Sonhando e O Poeta, o eu-lírico idolatra virgens pálidas em uma atmosfera de delírio e suavemente sensual. Ainda nessa primeira parte, poemas como Lembrança de morrer e Saudades, o poeta aborda com seriedade a temática da morte.
“Cuidado, leitor, ao virar esta página!”: a segunda parte revela um poeta mórbido e sarcástico, capaz de tratar de assuntos mais mundanos e explícitos. Aqui o poeta é capaz de ironizar inclusive a si próprio. Destaque para É ela! É ela! É ela! É ela!, em que o eu-lírico revela sua paixão pela lavadeira; Namoro a Cavalo, em que o poeta trata das dificuldades por que passa o namorado para encontrar sua namorada que mora longe; e a auto-piedade em Idéias Íntimas.
Soneto
Pálida à luz da lâmpada sombria,
Sobre o leito de flores reclinada,
Como a lua por noite embalsamada,
Entre as nuvens do amor ela dormia!

Era a virgem do mar, na escuma fria
Pela maré das águas embalada!
Era um anjo entre nuvens d'alvorada
Que em sonhos se banhava e se esquecia!

Era mais bela! o seio palpitando
Negros olhos as pálpebras abrindo
Formas nuas no leito resvalando

Não te rias de mim, meu anjo lindo!
Por ti - as noites eu velei chorando,
Por ti - nos sonhos morrerei sorrindo!

terça-feira, 4 de março de 2008

Indicação de Leitura: Dois Irmãos (Milton Hatoum)

Um velho tema, mas com um enfoque original. O romance Dois Irmãos, de Milton Hatoum aborda o conflito entre os irmãos gêmeos Yaqub e Omar. Imediatamente me ocorre o machadiano Esaú e Jacó. Mas não nos enganemos, pois o romance de Hatoum não se limita às abordagens já feitas sobre gêmeos que se odeiam mutuamente. Trata-se de uma obra extremamente emblemática da nossa literatura contemporânea: o verdadeiro tema é a busca pela identidade, em uma narrativa fragmentária, mas extremamente coerente. A trama se passa em Manaus e abrange um período entre as décadas de 1910 e 1960. Ao leitor cabe o desafio de juntar os cacos da história e construir em sua imaginação o espaço, os personagens e a misteriosa figura do narrador.

“Desta vez Halim parecia baqueado. Não bebeu, não queria falar. Contava esse e aquele caso os gêmeos, de sua vida, de Zana, e eu juntava os cacos dispersos, tentando recompor a tela do passado.”
Boa leitura a todos!!!


domingo, 2 de março de 2008

Crônica: Salvem as Vogais (Martha Medeiros)

O que pode ser mais miserável do que uma pessoa faminta, sem teto, sem futuro, sem saúde? Sabemos que não são poucos os miseráveis do país, mas às vezes esquecemos da quantidade também imensa de miseráveis que está em nossa órbita, cuja barriga não está vazia, mas a cabeça, totalmente.
Acompanhei a transcrição dos chats que foram divulgados pela imprensa, para que se saiba mais sobre o que aconteceu com aquele rapaz que morreu num posto de gasolina, depois de uma briga. Lula nem precisava levar os ministros para o Nordeste para que eles conhecessem a pobreza extrema, bastaria que entrassem numa sala de bate-papo virtual. Miséria psicológica também atola um país.
Dependendo da escolha do assunto, é possível encontrar na internet conversas que fazem sentido, com frases que têm começo, meio e fim, mas na maioria das salas o que costuma rolar é um papo furado da pior qualidade, com altos teores de vulgaridade e agressividade. Um bando de seres abreviados, tal como escrevem. Um miserê de dar medo.
A fome de pão e leite tem que ser saciada com urgência, mas nossa miséria é mais ampla e se manifesta de várias maneiras, não só através da perda de peso e dos ossos aparecendo sob a pele. Miséria é perda de discernimento. Perda de amor-próprio. Perda de limites. Até perda de vogais: vc q tc cmg? Normal: códigos de internautas. Mas me diz se não é o retrato da penúria.
Eu vejo miséria por todos os lados, em todos os andares dos edifícios, dentro dos carros, fora deles, em portas de escolas e dentro delas, do lado de fora da nossa casa ae também ali comodamente instalada, miséria espiritual, miséria afetiva, miséria intelectual, indigências que tornam o ser humano cada dia mais tosco e bruto. Eu sei que a vida é assim mesmo, que os tempos são outros, que não adianta vir com moralismo e com este papo de que a família tem que participar mais da vida dos filhos, nada adianta, o rio vai seguir correndo para a mesma direção. Eu sei. Mas não me conformo.
O alfabeto tem 21 consoantes, se contarmos o K, o Y e o W. E apenas cinco vogais. Perdê-las é uma metáfora da miséria humana. Cada dia abandonamos as poucas coisas em nós que são abertas e pronunciáveis. Daqui a pouco vamos apenas rugir. Grrrrrrr. E voltar para a caverna de onde todos viemos.

Publicado em Zero Hora, 19 de março de 2003.

Aos colegas professores de Língua e Literatura

Nosso componente curricular de Literatura deve buscar, fundamentalmente, a formação de cidadãos-leitores, capazes de uma interação crítica com a realidade que os cerca. Trata-se, portanto, de um grande desafio, uma vez que temos nos deparado cada vez mais com o desinteresse dos jovens, de modo geral, pela leitura. Esse desinteresse reflete sua inserção em uma cultura de consumo instantâneo; individualista, mas ao mesmo tempo, e paradoxalmente, de massas. Assim, os bens culturais de que nossos alunos dispõem, via de regra, são aqueles que se recebem prontos, acabados, acessíveis a todos sem a exigência de qualquer mediação intelectual. A leitura constitui, pois, um espaço de reafirmação do indivíduo contra o processo de massificação bem como de realização do sujeito como ser social, depositário das experiências da coletividade. Para que possamos conduzir o aluno à conquista desse espaço, planejamos um primeiro encontro em que o objetivo consiste justamente no resgate da linguagem como fator elementar para a realização humana. Para isso, iremos propor um diálogo a partir de algumas provocações:

a) O que é a linguagem?

b) Existe uma linguagem animal?

c) A linguagem é uma propriedade inata do ser humano?

d) Como se deu o surgimento dessa propriedade?

A partir do debate, faremos uma breve exposição sobre o processo de hominização, demonstrando a importância fundamental da linguagem na construção do ser humano enquanto tal. Será desenvolvida uma reflexão sobre o poder que atribuímos à palavra ao longo da história: evocar algo que não está ao alcance dos sentidos recriando a realidade pretérita ou criar uma nova realidade com o uso dessa faculdade.Assim, procuraremos demonstrar que somos ao mesmo tempo produtores e produto dessa linguagem, ou seja: a linguagem deve ser percebida também como um instrumento de poder. Nesse ponto poderemos discutir os diversos níveis de linguagem, entre eles as variantes utilizadas no cotidiano do jovem, como as gírias e a linguagem abreviada da comunicação virtual.* Aqui se faz necessário um questionamento: “As novas formas de comunicação e entretenimento podem substituir a Literatura?”.Por fim, encerraremos nosso debate buscando conceituar a Literatura, relacionando-a às diversas linguagens que permeiam nosso dia-a-dia, esclarecendo seu poder na formação cultural do indivíduo e, consequentemente, no enriquecimento de suas possibilidades de interação crítica frente à realidade que o rodeia.

Bom trabalho para todos nós!

*Um bom texto de apoio para a reflexão é "Salvem as Vogais", de Martha Medeiros.