sexta-feira, 14 de março de 2008

A Carta de Caminha e a carnavalização do Brasil

Pensando sobre a imagem que temos de vários povos do mundo, facilmente elencamos qualidades positivas, como a pontualidade britânica, a inteligência e capacidade de trabalho dos japoneseses, e assim por diante...

E quanto a nós, brasileiros? Muitos se referem à malandragem, ao popular jeitinho brasileiro (e olha que trabalhamos 4 ou 5 meses dos 12 do ano só para pagar impostos). Mas sem dúvida, a tríade samba, mulher e futebol é a nossa auto-imagem campeã. Em suma, não produzimos nada, mas podemos entreter o resto do mundo com nossa "alegria". Mas afinal, onde começa essa história?

Durante séculos, a literatura foi exclusiva na formação de nossa subjetividade, de nosso inconsciente coletivo. Um grande repositório de nossas idéias, inclusive sobre aquilo que nós somos ou julgamos ser. E o primeiro capítulo dessa história é o que alguns chamam de "certidão de nascimento do Brasil".

O Quinhentismo


O Quinhentismo foi vivido no Brasil em meio ao “descobrimento” e aos interesses da exploração de riquezas materiais. Não se pode falar, propriamente, em Literatura Brasileira, uma vez que os textos da época somente atendem ao ponto de vista do colonizador, pois todos os autores (e potenciais leitores) são europeus. Além disso, predominam na época os relatos de viagem, textos informativos, de caráter documental e, portanto, com maior valor histórico do que literário. Mesmo assim, esses textos são chamados de Literatura de Informação.



Carta a El-Rei Dom Manuel sobre o achamento do Brasil

A famosa Carta de Pero Vaz de Caminha, escrita entre 26 de abril de e 1º de maio de 1500, tinha como objetivo informar ao rei de Portugal o descobrimento e relatar-lhe as peculiaridades do novo território. É tida como uma espécie de “certidão de nascimento” do Brasil (expressão que adere ao ponto de vista do colonizador). Na verdade, é o primeiro retrato de nossa terra e, mesmo passados mais de quinhentos anos, ainda é bastante revelador de marcas profundas na formação de nossa identidade enquanto povo.



Aspectos importantes:

Descritivismo

Tudo na Carta é descrito nos mínimos detalhes. Repare como o índio é analisado como mais um elemento integrante da natureza exótica do local:

A feição deles é parda, algo avermelhada; de bons rostos e bons narizes. Em geral, são bem feitos. Andam nus, sem cobertura alguma. Não fazem o menor caso de cobrir ou mostrar suas vergonhas, e nisso são tão inocentes como quando mostram o rosto. Ambos traziam os beiço de baixo furado e metido nele um osso branco, do comprimento de uma mão travessa e da grossura de um fuso de algodão.


Choque cultural e Origens do estigma da sensualidade brasileira

O trecho acima já revela o choque entre os tabus religiosos do europeu e a nudez dos nativos. Na verdade, a atmosfera edênica fascina os portugueses, e esse registro na Carta começa a forjar uma imagem do Brasil associada à liberdade sexual. Observe o excerto abaixo:


Ali andavam entre eles três ou quatro moças, muito novas e muito gentis, com cabelos muito pretos e compridos, caídos pelas espáduas, e suas vergonhas tão altas e tão cerradinhas e tão limpas das cabeleiras que, de as muito bem olharmos, não tínhamos nenhuma vergonha.



Visão paradisíaca, Concepção mercantilista e colonizadora e Ideal salvacionista


Corroborando a idéia de que o Brasil seria o "eldorado", paraíso perdido na América, a natureza exuberante, exótica e inexplorada é vista com fascínio.



A terra por cima é toda chã e muito cheia de grandes arvoredos. De ponta a ponta é tudo praia redonda, muito chã e muito formosa. [...]



Sem dúvida, a serviço da Coroa, Caminha não poderia deixar de registrar a preocupação em encontrar metais preciosos. Não logrando êxito nesse intento num primeiro instante (o surto aurífero só vai ocorrer no século XVIII, em Minas Gerais), o escrivão sugere insistentemente as potencialidades naturais do local e sugere sua colonização:



Nela até agora não pudemos saber que haja ouro, nem prata, nem coisa alguma de metal ou ferro; nem o vimos. Porém, a terra em si é de muito bons ares, assim frios e temperados, como os de Entre-Douro e Minho, porque neste tempo de agora os achávamos como os de lá.
As águas são muitas e infindas. E em tal maneira é graciosa que, querendo aproveitá-la, tudo dará nela, por causa das águas que tem.
Porém, o melhor fruto que dela se pode tirar me parece que será salvar esta gente. E esta deverá ser a principal semente que Vossa Alteza nela deve lançar.



A Herança Literária da Carta


Além desses caracteres que analisamos acima, a literatura informativa emprestou muitos de seus temas e formas para períodos literários posteriores, em especial para o Romantismo (indianismo, fundação da nacionalidade) e para o Modernismo (revisão crítica da identidade nacional).
O poeta modernista Oswald de Andrade realizou apropriações parodísticas da carta, subvertendo seu sentido ao recortar as frases do texto original, dispondo-as de outra maneira.

As Meninas da Gare
Eram três ou quatro moças bem moças e bem gentis
Com cabelos mui pretos pelas espáduas
E suas vergonhas tão altas e tão saradinhas
Que de nós as muito olharmos
Não tínhamos nenhuma vergonha
(OSWALD DE ANDRADE, em Pau-Brasil)
Cena do filme Caramuru, a Invenção do Brasil.
Ali andavam entre eles três ou quatro moças, bem moças e bem gentis, com cabelos muito pretos, compridos pelas espáduas, e suas vergonhas tão altas, tão cerradinhas e tão limpas das cabeleiras que, de as muito bem olharmos, não tínhamos nenhuma vergonha. (CAMINHA)



Confrontando-se os textos de Oswald e Caminha, a sensação inicial é de estranhamento. O poeta modernista teria plagiado a "Carta"? Certamente não. Esse texto de Oswald é muito mais genial do que parece. O texto modernista se apropria de um fragmento da carta, disposto em verso. E... ? Até aqui nada de novo. Mas preste atenção no título: "As meninas da Gare", ou seja, as meninas da estação (de trem). Com a simples colocação desse título, Oswald empurra o texto de Caminha por mais de 400 anos, atualizando e subvertendo seu significado. O viajante, ao desembarcar na estação, encontra nossas mulheres com o corpo à mostra, disponíveis para a exploração. Trata-se de uma metáfora da prostituição do país ao longo dos séculos!


Bueno, a Carta de Caminha é apenas o primeiro capítulo de nossa viagem pela formação cultural do Brasil, mas certamente suas marcas podem ser percebidas até hoje.

Download da Carta de Caminha (texto integral)

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