sexta-feira, 20 de fevereiro de 2009

A Brincadeira (Tchekov)


Um claro dia de inverno…Faz tanto frio que a neve estala debaixo dos pés, e Nádenka, que eu levo pelo braço, fica com os cachos no lado da cabeça e o pelo fininho no lábio superior cobertos de orvalho cintilante. Estamos no topo de um morro muito alto. Diante dos nossos pés, até a planície, lá embaixo, estende-se um declive escorregadio e brilhante no qual o sol se reflete como um espelho. Ao nosso lado está um pequeno trenó forrado de pano vermelho.

“Vamos deslizar até lá embaixo, Nadêjda Petrovna”, imploro, “Só uma vez! Garanto que vamos ficar sãos e salvos!”

Mas ela tem medo. A distância entre as suas pequeninas galochas e o fim da montanha de gelo lhe parece um abismo terrível, de profundidade incalculável. Ela fica tonta e perde o fôlego só de olhar lá para baixo, quando eu lhe proponho sentar no trenó – imagina então se ela arriscar despencar no precipício? Ela é capaz de morrer ou enlouquecer!

“Eu lhe suplico”, digo eu, “Não tenha medo! Você não percebe que isso é fraqueza? É covardia?”

Nádenka acaba cedendo, e eu vejo pelo seu rosto que ela acredita que cede com perigo da própria vida. Eu a acomodo, pálida e trêmula, no trenó, sentom-me também. Ponho o braço em volta dela e, juntos, nos precipitamos no abismo.

O trenó voa como uma bala. O ar chicoteia o rosto, silva nos ouvidos, bate, belisca com raiva, até doer, parece querer arrancar a cabeça dos ombros. A pressão do vento dificulta a respiração. É como se o diabo em pessoa tivesse nos agarrado com as patas, e, urrando, nos arrastasse para o inferno. Os objetos que nos cercam fundem-se num só longo risco, que corre vertiginoso. Parece que em mais um instante estaremos perdidos.

“Eu te amo, Nádia”, digo eu a meia voz.

O trenó começa a deslizar mais devagar, mais devagar, os uivos do vento e os zumbidos das lâminas do trenó já não são tão terríveis, a respiração já não é tão ofegante, e, finalmente, chegamos ao fim. Nádenka está mais morta do que viva. Pálida, mal consegue respirar… Eu a ajudo a levantar-se.

“Nunca mais faço isso!”, diz ela, encarando-me com os olhos dilatados, cheios de terror. “Por nada nesse mundo! Por pouco não morri!”

Logo depois ela volta a si e já me encara com um olhar interrogador: terei sido eu quem disse aquelas quatro palavras, ou foi uma alucinação dentro do zunido da ventania? Mas eu estou calado diante dela, fumando e examinando com atenção a minha luva.

Ela toma o meu braço e passeamos diante do morro. O prblema, visivelmente, não a deixa em paz. Aquelas palavras foram mesmo pronunciadas ou não? Sim ou não? Sim ou não? É uma questão de amor-próprio, de honra, de vida, de felicidade, uma questão muito importante, a mais importante do mundo. Nádenka examina o meu rosto com olhares impacientes, tristes, penetrantes, responde de qualquer jeito as minhas perguntas, espera que eu fale. Meu Deus! Que jogo de emoções neste rosto encantador, que jogo! Vejo nitidamente como ela luta consigo mesma. Ela precisa dizer alguma coisa, perguntar, mas não encontra as palavras. Está encabulada, amedrontada, embargada pela alegria…

“Sabe duma coisa?”, diz ela, sem olhar para mim.

“O quê?”, pergunto eu.

“Vamos de novo… Vamos deslizar pelo morro.”

Subimos pela escada até o alto. De novo faço Nádenka, pálida e trêmula, sentar no trenó, de novo despencamos no precipício medonho, de novo o vento uiva e as lâminas zunem, e de novo, quando o vôo do trenó está no auge, eu digo a meia voz:

“Eu te amo, Nádia.”

Quando finalmente o trenó pára, Nádenka lança um olhar para o morro que acabamos de descer voando, depois examina longamente o meu rosto, escuta, atenta, a minha voz indiferente e calma, e toda ela, toda, até mesmo o capote de peles e o capuz, toda a sua figurinha, transmite extrema perplexidade. E no seu rosto está escrito:

“Mas o que está acontecendo? Quem pronunciou aquelas palavras? Foi ele, ou meus ouvidos me enganaram?”

A incerteza a perturba, a impacienta. A pobrezinha não responde às minhas perguntas, franze a testa, está quase chorando.

“Você não prefere ir para casa?”, pergunto eu.

“Mas eu… Eu gosto dessas… descidas”, diz ela, enrubescendo. “Não quer descer o morro mais uma vez?”

Ela diz gostar destas descidas, e mesmo assim, quando chega o momento de sentar no trenó, como das outras vezes, ela fica pálida, trêmula, ofegante de medo.

Descemos pela terceira vez, e eu vejo como ela fixa o olhar no meu rosto, como observa os meus lábios. Mas eu aperto o lenço contra a boca, tusso, e quando chegamos no meio da encosta, deixo escapar:

“Eu te amo, Nádia!”

E assim o enigma continua. Nádenka se cala, está pensando… Eu a acompanho para casa, ela procura andar mais devagar, atrasa o passo, espera que eu lhe diga aquelas palavras. Eu eu vejo claramente como sofre, como tem que se esforçar para não dizer:

“Não pode ter sido o vento! Eu não quero que tenha sido o vento quem disse aquilo!”

No dia seguinte de manhã, recebo um bilhetinho: “Se for ao morro hoje, venha me buscar. N.” E desde essa manhã, comecei a ir com ela ao morro, todos os dias e, voando encosta abaixo no trenó, eu pronuncio, cada vez, a meia voz, as mesmas palavras:

“Eu te amo, Nádia!”

Logo Nádenka acostuma-se à frase, como outras pessoas se acostumam ao vinho ou à morfina. Não pode mais viver sem ela. É verdade que voar montanha abaixo lhe dá medo, como antes, mas agora o medo e o perigo acrescentam um encanto especial às palavras de amor, palavras que continuam sendo um enigma… Continuam oprimindo a alma. São sempre os mesmos suspeitos: eu e o vento… Qual dos dois lhe declara o seu amor, ela não sabe, mas ao que parece, isso já não importa, não importa o copo em que se bebe, importa é fica embriagada!

Um dia, fui até o morro sozinho; misturei-me à multidão e de repente vejo como Nádenka chega até o sopé, como me procura com os olhos… Depois, timidamente, ela sobe os degraus… Ela tem muito medo de ir sozinha, meu Deus, quanto medo! Está pálida como a neve, treme, vai adiante como se fosse para a fôrca, mas vai, vai sem olhar para trás, cheia de decisão. Pelo visto, ela resolveu finalmente tirar a prova: será que aquelas palavras estranhas vão se fazer ouvir quando eu não estiver junto? Então vejo como ela, lívida, com a boca meio aberta de terror, toma assento no trenó, fecha os olhos, e, despedindo-se para sempre do mundo, faz com que ele se ponha em movimento… zzzzz… zunem as lâminas. Será que ela ouviu aquelas palavras? Não sei… Só o que vejo é como ela se levanta to trenó, exausta, fraca. E pelo seu rosto percebe-se que nem ela mesmo sabe se ouviu alguma coisa ou não. O pavor, enquanto ela voava morro abaixo, roubou toda sua capacidade de ouvir, de distinguir os sons, de entender…

Mas então chega o mês de março, e com ele a primavera… O sol torna-se mais carinhoso. O nosso morro de gelo escurece, perde o seu brilho e derrete. Acabaram os passeios de trenó. A pobre Nádenka já não tem mais onde ouvir aquelas palavras, e nem há quem as pronuncie, pois o vento não se ouve mais, e eu me preparo para voltar a São Peterburgo, onde vou ficar muito tempo, talvez para sempre.

Pouco antes de partir, uns dois dias talvez, estava eu sentado, ao crepúsculo, no jardinzinho, separado do pátio onde mora Nádenka por uma cerca alta de madeira. Ainda faz bastante frio, ainda há neve pelos cantos, as árvores ainda estão mortas, mas já se sente o cheiro da primavera. Aproximo-me da cerca e espio pela fresta. Vejo como Nádenka sai para os degraus e fixa no céu o olhar tristonho… O vento da tarde lhe sopra no rosto, pálido e desanimado… Ele faz com que ela se lembre daquele outro vento, que uivava lá no morro, quando ela ouvia aquelas quatro palavras. Com isso o seu rosto fica triste, muito triste, e pela faze desliza uma lágrima… A pobrezinha estende os braços, como se implorasse ao vento que lhe traga mais uma vez aquelas quatro palavras. Eu espero o vento favorável, e sopro a meia vez:

“Eu te amo, Nádia!”

Meu Deus, o que aconteceu com Nádenka! Ela solta um grito, sorri com o rosto inteiro e estende os braços ao encontro do vento, risonha, feliz, tão bonita.

E eu vou arrumar as malas.

Isso tudo foi há muito tempo. Agora, já é casada; casaram-na, ou foi ela mesma que quis – não importa – com um secretário da Curadoria, e hoje ela já tem três filhos. Mas os nossos passeios no morro e a voz do vento trazendo-lhe as palavras “eu te amo, Nádenka”, não foram esquecidas. Para ela, isso é hoje a mais feliz, a mais comovente e a mais bela recordação de sua vida.

Mas eu, agora que estou mais velho, não compreendo mais, para que dizia aquelas palavras, não compreendo mais porque brincava…

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