domingo, 18 de janeiro de 2009

Comentários sobre a Prova da UFPel

RETROCESSO. Não há palavra mais definidora daquilo que ocorre com o processo seletivo da UFPel, ao menos no que diz respeito à disciplina Literatura.
Há algum tempo, o espaço conferido à matéria nas provas é bastante diminuto, contrariando o que se observa em provas tidas como referencial de excelência, como as da UFRGS, da UFSM e da FURG. Neste ano, o processo de inverno trouxe 3 questões (o que não chega a ser digno de ser comemorado), sinalizando um pequeno avanço, mas a prova de verão superou quase todos os prognósticos negativos: apenas duas questões versando sobre leituras obrigatórias (são dezenas de obras exigidas) e uma delas PASSÍVEL DE ANULAÇÃO. Senão, vejamos:

2- Em nossa lista de leituras obrigatórias para esta prova, aparecem várias personagens femininas fortes. Assinala a alternativa que corretamente justifica a força da personagem a que faz alusão.

(a) Em O Cortiço, Rita Baiana, personagem plana, conota a sensualidade da mulher comum. Suas estratégias de sedução encantam o até então
pouco ambicioso João Romão, impulsionando-o
ao progresso e à riqueza material.
(b) Em Navio Negreiro, a força da escrava que
protege do opressor o filho recém-nascido nos
porões do navio simboliza a resistência do eu-lírico
negro à violência do sistema.
(c) No conto Natal na barca, a fé da mãe que carrega
o filho doente no colo provoca uma mudança de
perspectiva na narradora, que é onisciente.
(d) Na obra árcade, Marília de Dirceu é um
pseudônimo da princesa por quem o eu-lírico se
apaixonou. Sua força está na ousadia em
enfrentar os ditames da vida social na colônia.
(e) No poema de João Cabral de Melo Neto,
Severino logra êxito em sua empreitada tão somente
por contar com o alento da mulher, em
cuja anuência encontra forças para vencer no “sul
maravilha” e derrotar a seca, sua antagonista.
(f) I.R.


A questão exigiu, em cada alternativa, conhecimentos sobre uma obra diferente. A resposta que consta no gabarito é a letra "c", enfocando o conto Natal na Barca. De fato, o texto dessa afirmativa aponta para o elemento essencial do conto: a "mudança de perspectiva" sofrida pela narradora. Confirmando isso, coloco as minhas palavras usadas aqui no blog, na véspera da prova: O conto é narrado em 1ª pessoa e a narradora sofre uma profunda transformação durante o diálogo com uma mulher que trazia consigo uma criança: a passagem da descrença à fé.
O Problema é que a resposta tida como correta se refere a uma narradora "onisciente", o que não condiz com o que se observa no conto de Lygia Fagundes Telles. A narradora dialoga com sua interlocutora sem muito bem compreender a força daquela mulher diante de problemas como a pobreza, a perda de um filho e a separação do marido. Fica perplexa diante da suposta ressurreição do bebê, sem nunca demonstrar capacidade de "ler" os pensamentos ou sentimentos recônditos de outras personagens. Não pode, portanto, a narradora-protagonista ser considerada "onisciente".

Além disso, não há outra resposta possível para a questão entre as alternativas elencadas na prova.

A letra "a" versa sobre O Cortiço e sugere um envolvimento inexistente entre Rita Baiana e João Romão, além de concebê-lo como "pouco ambicioso" em um dado momento, o que também é um disparate.

A alternativa "b", por seu turno, versa sobre O Navio Negreiro, referindo-se a uma suposta cena em que uma mãe negra protegeria o filho recém nascido no porão da embarcação. A parte IV do poema, que ilustra os acontecimentos no porão do navio não contém nada nesse sentido. Ademais, há uma refeência a um eu-lírico negro, o que não se configura nesse texto em que a voz do poeta indignado com a brutalidade da escravidão é que constitui o sujeito lírico.

Já a alternativa "d" faz alusão à Marília da Dirceu, referindo-se à musa de Gonzaga como uma "princesa" que teria "enfrentado os ditames da vida social na Colônia". Há uma tese, bastante corrente, que considera Maria Dorotéa Joaquina de Seixas Brandão como musa inspiradora das liras de "Dirceu". A "Marília", portanto seria a moça de quinze anos, de família tradicional, por quem o poeta se apaixonara, e a qual pedira em casamento algum tempo depois. Nesse sentido, não temos nenhuma "princesa" ousada, lutando contra os interesses da Coroa.

Por fim, a alternativa "e" traz à baila, mais uma vez, Morte e Vida Severina, de João Cabral de Melo Neto. Repete-se aqui a sugestão, já explorada em prova anterior, de que Severino teria migrado para o "Sul Maravilha", o que é inverídico, pois no "Auto de Natal Pernambucano"", o protagonista não sai do estado de Pernambuco. Tampouco pode-se dizer que Severino supera sua condição miserável ao longo do poema. Para encerrar, a mulher de Severino referida no texto da alternativa em análise não existe no texto de João Cabral.

Fica, portanto, demonstrada a impossibilidade de se constituir resposta correta para a questão em estudo, uma vez que todas as alternativas ensejam incoerências em relação às obras a que se referem.


..................................................................................................


Já vi isso em algum lugar... UFPel parafraseia questão da UNIFESP

Resta-nos apenas a questão de nº1, sobre o conto Uns Braços, de Machado de Assis. Era previsível que os 100 anos da morte do Bruxo do Cosme Velho fossem lembrados e, como imaginávamos, com um de seus contos mais emblemáticos e mais complexos. Esse conto já havia sido explorado no Vestibular de Inverno de 2007, mas a sensação de reprise não para por aí. Vejam a questão abaixo:

(UNIFESP) Uma das características do Realismo é a introspecção psicológica. No conto, ela se manifesta, sobretudo,

A) no comportamento grosseiro de Borges, que impõe medo a D. Severina e desperta ódio em Inácio.
B) nas vivências interiores de Inácio e de D. Severina, que revelam seus sentimentos e conflitos.
C) na forma solitária como Inácio se submete no trabalho com Borges, sem que pudesse estar com sua mãe e irmãs.
D) nas reflexões de D. Severina, que vê Inácio como uma criança que merece carinho e não o silêncio e a reclusão.
E) na forma como o contato é estabelecido entre as personagens, já que a falta de diálogo é uma constante em suas vidas.
Questão essa que tive oportunidade de resolver com meus alunos no pré-vestibular, pois constava em nosso material didático.


Agora a questão "da UFPel":

Uma das características do Realismo é a introspecção psicológica. No conto Os Braços, de Machado de Assis, ela se manifesta, sobretudo,

(a) no comportamento grosseiro de Borges, que impõe medo a sua antagonista, D. Severina, e desperta ódio em Inácio.
(b) nas vivências interiores de Inácio e de D. Severina, que revelam seus sentimentos e conflitos.
(c) nas reflexões de D. Severina, que vê Inácio como uma criança que merece carinho e não o silêncio e a reclusão. Essa redenção de um personagem é uma das marcas desse movimento literário.
(d) na forma como o contato é estabelecido entre as personagens, ambas planas, já que a falta de diálogo é uma constante em suas vidas.
(e) na onisciência do narrador, que, a partir do dilema moral vivido por Inácio, simboliza as contradições do homem da época.


Qualquer semelhança não pode ser mera coincidência. Outro detalhe: o título do conto é UNS Braços, e não OS Braços, como consta no enunciado. Machado deve estar se revirando com essa "homenagem".

Depois disso... Sem comentários.

Nenhum comentário:

Postar um comentário