quarta-feira, 2 de dezembro de 2009

Camões e Pessoa vítimas de «confiscação patriótica»




Apesar de Fernando Pessoa ter procurado em Mensagem, publicado há 75 anos, ir além da História de Portugal, o seu poema épico acabou alvo de «confiscação patriótica», tal como a obra que ambicionava superar - Os Lusíadas, de Camões


Lusa / SOL


Para Eduardo Lourenço, ensaísta convidado para a sessão comemorativa do 75º aniversário da publicação de Mensagem, o poema épico de pessoa foi «tomado de imediato como uma espécie de bíblia no nacionalismo poético, apesar do seu misticismo obscuro», de tal forma que chegou a ser «um livro quase popular».

«Em parte devido a essa confiscação patriótica do poema, muitos dos que admiravam Pessoa como um mago que alterara a nossa paisagem lírica e a nossa visão do mundo prestaram pouca atenção» a Mensagem, afirmou o ensaísta, na sessão que decorreu num repleto auditório da Biblioteca Nacional, em Lisboa.

«É um livro de um outro futuro, 'Mensagem' teria que esperar uma leitura mais adequada ao seu mistério e à sua intrínseca estranheza, tanto no fundo como na forma, num outro tempo mais propício e aberto, igualmente mais complexo e estranho», acrescentou.

Apesar do desejo expresso de Pessoa para superar Camões, indo além da epopeia histórica para os territórios do misticismo, ambas as obras acabaram reféns do nacionalismo.

«Coitado do nosso Camões. Tão aproveitado foi e tão aproveitado será. É o poeta do nosso Império», resumiu Lourenço.

O poeta e ensaísta Vasco Graça Moura lembrou a forma depreciativa como Pessoa se referiu a Os Lusíadas: «uma reportagem transcendente que o assunto obrigou a tornar épica».

Mais do que uma «vontade de superar» o poema épico dos Descobrimentos, houve «despeito em relação a Camões», que é esquecido na galeria de figuras da História de Portugal evocadas em Mensagem.

Enquanto poema épico, criticou Graça Moura, é «totalmente insensível» à «afectividade», ao «lado lírico», bem como ao «papel da mulher», presente em todas as grandes epopeias desde a Odisseia.

Também para o poeta Manuel Alegre houve uma tentativa de «desvalorizar Camões», embora o autor de Os Lusíadas esteja «sempre presente».

«O grande pecado da 'Mensagem' é a ausência de Camões. Pessoa sempre teve uma questão, talvez uma questão com ele próprio», afirmou Alegre.

Já para Eduardo Lourenço, Camões está «presente na ausência» e a «comparação entre os dois poetas pode ser muito útil» no ensino literário, pois «permite aos professores reciclar a história».

O poema de Pessoa, único em língua portuguesa publicado ainda em vida, tinha como título inicial Gládio e o seu destinatário, em vez do Infante Santo, era «o próprio poeta», segundo Lourenço.

«Era o poeta investido no seu papel messiânico e escolhido por Deus para conduzir a Santa Guerra, a guerra de Deus contra o desmentido da realidade, o triunfo do sonho sobre a morte dos sonhos», afirmou o ensaísta.

«O Quinto Império não tem outra substância além desse desafio, loucura assumida de atravessar incólume a linha imaginária entre a vida que morre da vida sem fim», adiantou.

Na cerimónia, foi ainda lançada uma edição 'clonada' do dactiloscrito de Pessoa, que o editor Paulo Teixeira Pinto, da Guimarães, frisa ser mais do que um fac-simile.

«É uma verdadeira duplicação que pretendemos fazer, com o máximo cuidado, desde o tecido da capa do livro até à qualidade do papel (...). O [exemplar] autêntico é privilégio único da Biblioteca Nacional, mas é o mais possível próximo do original», descreveu.

No início, a ideia era fazer uma reedição aproximada, mas em contacto com o original na Biblioteca Nacional, e com «emoção nas mãos», Teixeira Pinto e a sua equipa decidiram «logo ali fazer exactamente igual».

«Pessoa dizia `não há factos, só interpretação de factos´. Nós não queremos interpretar nada, queremos só deixar este facto», afirmou o proprietário da Guimarães.

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