terça-feira, 29 de dezembro de 2009

Em "Barroco Tropical", Agualusa aposta no excesso e no insólito; leia trecho


da Folha Online


Casal presencia uma cena insólita: uma mulher despenca do céu

Baseado na cultura do excesso e na modernidade mal-assimilada, José Eduardo Agualusa compôs as páginas de "Barroco Tropical" (Companhia das Letras, 2009). Nele, mães de santo, curandeiros e outros personagens pitorescos invadem a narrativa que se desloca entre a África, a Europa e o Brasil. O insólito faz as vezes de coro da trama.

O escritor angolano identificou, em seu país, "uma certa cultura do excesso, quer na maneira de as pessoas se divertirem, quer na maneira de demonstrarem o sentimento e a dor".

A ação transcorre em Luanda, no ano de 2020, e é narrada alternadamente pelo escritor Bartolomeu Falcato e pela cantora Kianda, sua amante. Os dois testemunham juntos um fato insólito --uma mulher cai do céu.

A vítima é uma modelo e ex-miss que frequentou a cama de políticos e empresários de expressão, o que a tornou uma figura mal-quista na sociedade.

Leia abaixo a introdução da obra.

*

1. Uma mulher a cair do céu.

Contei os segundos entre o instante do relâmpago e o do trovão-um, dois, três, quatro, cinco, seis, sete. Depois multipliquei por trezentos e quarenta, a velocidade do som em metros por segundo, para calcular a distância a que caíra o primeiro raio: dois quilometros, trezentos e oitenta metros. Calculei o segundo, o terceiro, o quarto. A tempestade avançava veloz na nossa direção. Soube onde iria cair o quinto raio um instante antes que o céu se abrisse.

Kianda estava cerca de cem metros à minha frente e avançava, avançava sempre, como num palco, empurrada pela luz. Os sapatos afundavam-se na terra, vermelho-laca sobre vermelho-velho. Ao longe dançavam palmeiras. Ainda mais ao longe erguia-se a sólida silhueta de um embondeiro. Kianda caminhava muito direita, de rosto erguido, as belas mãos, de dedos longuíssimos e finos, cruzadas sobre o peito. A luz era uma substância dourada e densa, quase líquida, à qual se colavam folhas secas, papéis velhos, a fina poeira afogueada, matéria que o vento ia erguendo nos seus braços tortos.

O meu amor continuava a avançar de encontro à massa negra das nuvens. Lembrei-me das palavras de um famoso crítico de música, um velho inglês, um tanto excêntrico, tentando explicar o sucesso dela: "O que primeiro nos cativa é o contraste entre a fragilidade da silhueta, estranhamente angulosa, estranhamente elegante, e a altiva ferocidade do olhar. A voz poderosa e delicada. Apetece ao mesmo tempo protegê-la e espancá-la".

Kianda entrou na chuva. O leve vestido de seda, de um encarnado muito vivo, colou-se-lhe à pele, enquanto ia mudando de cor, para um tom escuro, quase roxo. O amplo decote nas costas
deixava ver as duas asas azuis que Kianda tatuou numa viagem ao Japão. A mim impressionam-me sempre, por melhor que as conheça, devido ao detalhe das penas e à técnica, em trompe-l'oeil, que cria uma ilusão de relevo. As asas movendo-se ao ritmo da respiração. A furiosa cabeleira em chamas, que tantas mulheres tentam imitar, apagou-se, perdeu volume e brilho, alongando-se sobre o firme desenho dos ombros.

Abri a porta e saí do carro, um Chrysler antigo, amarelo torrado, uma peça de coleção. O vento húmido fustigou-me o rosto. Gritei o nome dela, mais alto que o ribombar da tempestade. Kianda voltou-se para mim, ao mesmo tempo que erguia os olhos, num espanto mudo.

(Dou-me conta, enquanto releio o que escrevi, que parece o guião de um filme publicitário. Este é o momento em que devia surgir o frasco de perfume. Teria de ter um nome apropriado, algo como La tempête. Mas não. A partir deste instante o filme muda.)

Segui o olhar de Kianda e vi uma mulher a cair do céu. Caiu-veio caindo, nua, negra, de braços abertos-quase ao mesmo tempo que o raio. O raio fez explodir o embondeiro. Um meteorologista explicou-me, há muitos anos, que os raios podem fazer explodir as árvores ao provocarem a súbita ebulição da seiva. A mulher afundou-se entre o capim alto, não muito longe do carro. Aproximei-me. O corpo estava enterrado na lama. Tinha a cabeça deitada para trás. Reconheci aqueles olhos abertos, muito negros, ainda cheios de luz. Recuei aterrorizado. Não deixei que Kianda a visse:

-Vamos!
-Vamos?! E ela?
-Ela está morta, amor! Não se incomoda. Queres chamar a polícia?
-Não, não! A polícia não. Não quero chamar ninguém. Sabes muitíssimo bem que não nos podem ver juntos.

Abracei-a. Kianda tremia. Levei-a para o carro, sentei-a ao meu lado, e conduzi em silêncio de regresso a Luanda. Quando chegamos ainda a noite não descera sobre a cidade. Estacionei o carro a dois quarteirões do prédio dela. Debrucei-me para a beijar. Kianda afastou o rosto:

-Não! Nunca mais.

Saí. Ela tomou o meu lugar, pôs o carro em andamento e foi-se embora. Mandei parar um táxi. Durante muitos anos não houve em Luanda táxis individuais; havia somente táxis coletivos, os candongueiros, destinados a servir o povo.

(O Povo, ou Eles, é como em Angola nós, os ricos, ou os quase ricos, designamos os que nada têm. Os que nada têm são a esmagadora maioria dos habitantes deste país.)

O motorista era um congolês obeso. A pele do rosto, muito lisa, brilhava como um espelho à luz acobreada do final do dia. Abriu para mim um sorriso enorme:

-Para onde vamos, paizinho?
-Não sei.-Confessei numa voz sem cor. O Medo não me deixava pensar.-Para qualquer lado.

O homem voltou a sorrir:

-Não se preocupe. Eu levo-o lá.

Meia hora depois deixou-me à porta de um pequeno bar. Reparei no neon a pulsar sobre a porta -"O Orgulho Grego". O sorriso do taxista tinha agora o tamanho do mundo:

-Entre e pergunte pela Mãe Mocinha. Ela saberá dizer-lhe para onde ir. Nunca se engana.

(A mulher em queda, cinco dias antes.)

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