Quando ouviu o ruído da porta do apartamento sendo aberta, a mulher soergueu-se ligeiro na cama e disse, ela realmente disse:
- Céus, meu marido!
O amante ergueu-se também, espantado, menos com o marido do que com a frase.
- O que foi que você disse?
- Eu disse “Céus, meu marido!”
- Foi o que eu pensei, mas não quis acreditar.
- Ele me disse que ia para São Paulo!
- Talvez não seja ele. Talvez seja um ladrão.
- Seria sorte demais. É ele. E vem vindo para o quarto. Rápido, esconda-se dentro do armário!
- O quê? Não. Tudo menos o armário!
- Então embaixo da cama.
- O armário é melhor.
O amante pulou da cama, pegou sua roupa de cima da cadeira e entrou no armário, pensando “isto não pode estar acontecendo”. Começou a rir, descontroladamente. Até se lembrar que tinha deixado seus sapatos ao lado da cama. Ouviu a porta do quarto se abrir. E a voz do marido.
- Com quem é que você estava conversando?
- Eu? Com ninguém. Era a televisão. E você não disse que ia para São Paulo?
- Espere. Aqui no quarto não tem televisão.
- Não mude de assunto. O que é que você está fazendo em casa?
O amante começou a rir. Não podia se conter, mesmo sentindo que assim fazia o armário sacudir. Tapou a boca com a mão. Ouviu o marido perguntar:
- Que barulho é esse?
- Não interessa. Por que você não está em São Paulo?
- Não precisei ir, pronto. Estes sapatos…
O amante gelou. Mas o marido se referia aos próprios sapatos, que estavam apertados. Agora devia estar tirando os sapatos. Silêncio. O ruído da porta do banheiro sendo aberta e depois fechada. Marido no banheiro. O amante ia começar a rir outra vez quando a porta do armário se abriu subitamente e ele quase deu um berro. Era a mulher para lhe entregar seus sapatos. Ela fechou a porta do armário e se atirou de novo na cama antes que ele pudesse avisar que aqueles sapatos não eram os dele, eram os do marido. Loucura! Porta do banheiro se abrindo. Marido de volta ao quarto. Longo silêncio.
Voz do marido:
- Estes sapatos…
- O que é que tem?
- De quem são?
- Como, de quem são? São os seus. Você acabou de tirar.
- Estes sapatos nunca foram meus.
Silêncio. Mulher obviamente examinado os sapatos e dando-se conta do seu erro. O amante, ainda por cima, com falta de ar.
Voz da mulher, agressiva:
- Onde foi que você arranjou estes sapatos?
- Estes sapatos não são meus, eu já disse!
- Exatamente. E de quem são? Como é que você sai de casa com um par de sapato e chega com outro?
- Espera aí…
- Onde foi que você andou? Vamos, responda!
- Eu cheguei em casa com os mesmos sapatos que saí. Estes é que não são os meus sapatos.
- São os sapatos que você tirou. Você mesmo disse que estavam apertados. Logo, não eram os seus. Quero explicações.
- Só um momentinho. Só um momentinho!
Silêncio. Marido tentando pensar em alguma coisa para dizer.
Finalmente, a voz da mulher, triunfante:
- Estou esperando.
Marido reagrupando as suas forças. Passando para o ataque.
- Tenho certeza absoluta - absoluta! - que não entrei neste quarto com estes sapatos. E olhe só, eles não podiam estar apertados porque são maiores do que o meu pé.
Outro silêncio. A mulher, friamente:
- Então só há uma explicação.
O marido:
- Qual?
- Eu estava com outro homem aqui dentro quando você chegou. Ele pulou para dentro do armário e esqueceu os sapatos.
Silêncio terrível. O amante prenderia a respiração se não precisasse de ar. A mulher continuou:
- Mas nesse caso onde é que estão os seus sapatos?
O homem, sem muita convicção:
- Você poderia ter entregue os meus sapatos para o homem dentro do armário, por engano.
- Muito bem. Agora, além de adúltera, você está me chamando de burra. Muito obrigada.
- Não sei não, não sei não. E eu ouvi vozes aqui dentro…
- Então faz o seguinte. Vai até o armário e abre a porta.
O amante sentiu que o armário sacudia. Mas agora não era o seu riso. Era o seu coração. Ouviu os pés descalços do marido aproximando-se do armário. Preparou-se para dar um pulo e sair correndo do quarto e do apartamento antes que o marido se recuperasse. Derrubaria o marido na passagem. Afinal, tinha os pés maiores. Mas a mulher falou:
- Você sabe, é claro, que no momento em que abrir essa porta estará arruinando o nosso casamento. Se não houver ninguém aí dentro, nunca conseguiremos conviver com o fato de que você pensou que havia. Será o fim.
- E se houver alguém?
- Aí será pior. Se houver um amante de cuecas dentro do armário, o nosso casamento se transformará numa farsa de terceira categoria. Em teatro barato. Não poderemos conviver com o ridículo. Também será o fim.
Depois de alguns minutos, o marido disse:
- De qualquer maneira, eu preciso abrir a porta do armário para guardar a minha roupa…
- Abra. Mas pense no que eu disse.
Lentamente, o marido abriu a porta do armário. Marido e amante se encararam. Nenhum dos dois disse nada.
Depois de três ou quatro minutos o marido disse: “Com licença” e começou a pendurar sua roupa. O amante saiu lentamente de dentro do armário, também pedindo licença, e se dirigiu para a porta. Parou quando ouviu um “psiu”. Disse:
- É comigo?
- É - disse o marido. - Os meus sapatos.
O amante se lembrou que estava com os sapatos errados na mão, juntou com o resto da sua roupa. Colocou os sapatos do marido no chão e pegou os seus. Saiu pela porta e não se falou mais nisso.
segunda-feira, 2 de março de 2009
Farsa (Luis Fernando Veríssimo)
Marcadores:
crônicas,
Humor,
Literatura contemporânea,
Luís Fernando Verissimo
Assinar:
Postar comentários (Atom)
Nenhum comentário:
Postar um comentário