terça-feira, 24 de novembro de 2009

Conheça o polêmico livro de Clarice Lispector que a "Veja" chamou de "lixo"



Matéria da Livraria da Folha

"Lixo, sim: lançamento inútil". Foi como definiu, em julho de 1974, a revista "Veja" o livro "A Via Crucis do Corpo", de Clarice Lispector. Não foi a única crítica impiedoso. Até o "Jornal do Brasil", onde ela trabalhou, disparou: "teria sido melhor não publicar o livro, em vez de ser obrigada a se defender com esse falso desprezo por si própria como escritora".


"A Via Crucis do Corpo" traz única descrição de Clarice de um estupro
Os episódios são relatados no livro "Clarice,", biografia escrita pelo jornalista americano Benjamin Moser. "Meus filhos gostaram e esse é o julgamento que mais me interessa", disse Clarice. Os ataques a "A Via Crucis do Corpo" estão relacionados ao toque pornográfico do livro.

"A Via Crucis do Corpo é notável como retrato da vida criativa de Clarice captado em tempo real, a ficção invadindo a vida cotidiana, e sua existência de mãe e dona de casa constantemente penetrando e minando sua ficção. Os contos imaginativos, ficcionais, alternam-se com anotações corriqueiras de suas atividades diárias: o telefone toca; ela topa com um homem que conheceu no passado; seu filho Paulo chega para almoçar. Essas telas alternadas compõem um quadro de 11 a 13 de maio de 1974, os dias que Clarice passou escrevendo o livro. Aquele fim de semana, significativamente, incluía o Dia das Mães, 12 de maio. E o tema que une os contos coletados não é, na verdade, o sexo. É a maternidade. Um transexual tem uma filha adotiva, para a qual ele é uma 'verdadeira mãe'", analisa Moser, na biografia.

"A Via Crucis do Corpo" traz o conto "A Língua do p", no qual Lispector escreveu sua única descrição explícita de um estupro, destaca Moser. O aspecto é importante, porque a mãe da escritora sofreu essa violência por soldados russos, na Ucrânia, na virada da década de 1910 para 1920, contraindo sifílis. Pela lenda local, uma gravidez serviria para curar a doença, mas Lispector nasceu, e sua mãe acabou morrendo.

Com base em pesquisa, Benjamin formulou uma tese: a de que Lispector sentia-se predestinada a salvar a mãe da doença adquirida durante a violência na Ucrânia. O peso dessa falha --a mãe dela passou o final da vida inválida e morreria ainda jovem-- ecoaria ao longo de toda sua vida e obra. O outro grande revés que enfrentou --a doença psiquiátrica de um dos filhos, num tempo em que isso representava um estigma fortíssimo e um tratamento doloroso para todos-- completa o componente trágico identificado pelo biógrafo. Compreender sua dor como filha e como mãe ajuda a entender a escritora, mas sobretudo a humanizar o "monstro sagrado".

Leia um trecho do conto "A Língua do p", sobre Cidinha, uma professora de inglês de Minas Gerais que está num trem com destino ao Rio de Janeiro. Dois homens entram no vagão, um "era alto, magro, de bigodinho e olhar frio, o outro era baixo, barrigudo e careca":

"Havia um mal-estar no vagão. Como se fizesse calor demais. A moça inquieta. Os homens em alerta. Meu Deus, pensou a moça, o que é que eles querem de mim? Não tinha resposta. E ainda por cima era virgem. Por que, mas por que pensara na própria virgindade? Os homens começam a falar numa língua incompreensível, que Cidinha logo reconhece como a língua do p. Mas ela tem de fazer de conta que não entende, porque eles estão dizendo que tão logo o trem entre num túnel vão estuprá-la. "Me socorre, Virgem Maria! me socorre! me socorre!", ela pede em pensamento, enquanto os homens tagarelam naquela língua infantil. Eles podem matá-la, dizem, se ela resolver resistir. Acendendo um cigarro para ganhar algum tempo, a inspiração a ilumina: "Se eu me fingir de prostituta, eles desistem, não gostam de vagabunda".

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"A Via Crucis do Corpo"
Autora: Clarice Lispector
Editora: Rocco
Páginas: 84
Quanto: R$ 20
Onde comprar: 0800-140090 ou na Livraria da Folha

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"Clarice,"
Autor: Benjamin Moser
Editora: Cosac Naify
Páginas: 648
Quanto: R$ 79
Onde comprar: 0800-140090 ou na Livraria da Folha

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