quarta-feira, 18 de novembro de 2009

Resumo e Análise: CONCERTO CAMPESTRE (LUIZ ANTONIO DE ASSIS BRASIL)



CONCERTO CAMPESTRE
(LUIZ ANTONIO DE ASSIS BRASIL)



VEJA AQUI: AULA EM PPT E ANÁLISE COMPARATIVA ENTRE O LIVRO E O FILME

1. A orquestra

A sociedade da pequena Vila de São Vicente reúne-se na capela da estância do Major Antônio Eleutério de Fontes situada nas margens do rio Santa Maria para prestigiar o concerto de Páscoa da orquestra da Lira de Santa Cecília. O Major, potentado em terras e charqueador, tomou gosto pela música após ouvir dois índios missioneiros tocadores de guitarra espanhola e rabeca que cruzavam por aquelas bandas meio mortos de fome. Desconfiado dos índios e por achar a música uma diversão de "borrachos e putas", pensou em mandá-los embora, mas, após ouvir os acordes que enchiam a casa de um clima de igreja, ofereceu-lhes morada, contrariando D. Brígida de Fontes, sua esposa.
O gosto do Major por música logo se espalhou pela região e apareceram tocadores desocupados em busca de emprego. Os índios desapareceram e os tocadores passaram a viver numa verdadeira orgia de bebedeiras e banhos no Santa Maria. O Major só não os mandou embora a pedido do Vigário que visitava a fazenda regularmente e lhe disse que encontraria urna solução para o caso.
Em janeiro, acompanhado de um baú de partitura, um bandolim, uma pequena mala e um penico, o Maestro chegou à estância com uma carta de recomendação do religioso. Dominado pela idéia de montar uma orquestra, o Major tinha resolvido aceitá-lo, sem antes lhe recomendar severidade para botar ordem naquela malta de degenerados e virtude se quisesse manter a pele.
Mais tarde o Vigário explicaria à família que o Maestro não era baiano como todos pensavam, mas sim, procedente de Vila Rica, em Minas Gerais, onde adquirira conhecimentos musicais com os sacerdotes. Depois de algumas andanças, viera para o Rio Grande e fora aprisionado durante a Revolução de 1835. Posto em liberdade, oferecera seus trabalhos ao Vigário de São Vicente, mostrando que era um grande conhecedor de instrumentos e músicas. Vivera assim por três anos até que, vencido pela indolência e luxúria ou pela vaidade, armara um escândalo ao seduzir uma criada de família. A fim de abafar o caso e proteger o harmonista, o Vigário resolvera enviá-lo à estância.
A chegada do Maestro causou espanto em todos. Clara Vitória, única filha mulher do Major, sentiu um certo asco ao ver entrar em casa aquele homem de pele escura crivada de manchas, mas ficou a espiá-lo enquanto o pai lia a carta do Vigário. O Maestro notou a presença dela e ficou encantado com a beleza da jovem. O Major Eleutério concedeu-lhe então o quarto de hóspedes que fazia divisa com o quarto de sua filha. A proximidade do quarto permitia à Clara Vitória ouvir todos os ruídos do músico e, já na primeira noite, perdeu o sono a escutar os movimentos do recém chegado.
O Maestro veio para a estância disposto a mudar de vida. Aos trinta e poucos anos, o trabalho civil era a ocasião esperada. Quando chegou, foi logo expulsando os bêbados e organizando um pequeno grupo de músicos, comandados com dureza. No galpão da estância, o Maestro preparava ensaios exaustivos sem conseguir muitos resultados. O padre, certa feita, em visita à estância, pediu-lhe urgência em apresentar algo satisfatório, pois o Major já estava ficando descontente. Nesta ocasião, o Vigário quis ir até a tapera do boqueirão, a fim de conhecer o lugar asqueroso onde crescia a videira responsável pelas famosas uvas fantasmas, corno eram chamadas pelos escravos.
O Major e o Vigário partiram acompanhados de escravos para aquele lugar retirado algumas léguas da estância onde havia uma tapera, abandonada há muito tempo. O padre surpreendeu-se com o aspecto infernal do lugar, mas, ao mesmo tempo, deliciou-se com as saborosas uvas colhidas ali. De volta em casa, os dois acompanharam um ensaio do Maestro, assustando-se com a demência sonora, o que levou o Vigário a comparar aquilo tudo com o início dos tempos, "do caos surgira a ordem", assim como também as uvas fantasmas haviam surgido no boqueirão, um lugar primitivo. Depois, o Vigário resolveu batizar a orquestra de Lira Santa Cecília, em homenagem à padroeira da música.

2. A paixão

Os encontros entre Clara Vitória e o Maestro tornaram-se freqüentes no pátio da estância. Aos poucos, a jovem começava a demonstrar interesse pela música e conseqüentemente também pelo Maestro, que fingia não perceber quando ela acompanhava seus ensaios às escondidas. Certa tarde, ao voltar do campo, o Major finalmente ouviu uma música tocada pela orquestra e maravilhou-se com o som harmonioso: agora sim aquilo lembrava a música dos índios. Com permissão do Major, o Maestro partiu para Porto Alegre a fim de buscar o que faltava para organizar uma verdadeira orquestra. Durante sua ausência, Clara Vitória se ocupou em bordar o enxoval em companhia de D. Brígida, que demonstrava grande interesse pelo casamento da filha com Silvestre Pimentel moço. órfão, mas de família importante, futuro herdeiro das posses do Barão de Três Arroios.
Na cidade, o Maestro visitou a Igreja Matriz e conheceu o famoso maestro Mendanha. Os dois conversaram e, após um desafio, Mendanha se espantou com o conhecimento musical do Maestro, convidando-o para vir fazer parte da orquestra da Matriz. O Maestro recusou o convite e, na cidade, percorreu os lugares de "má vida" em busca de músicos. Em um café, encontrou o rabequista carioca José Grilo, conhecido por todos como Rossini. O sujeito era grande conhecedor de música e de ópera e se orgulhava de ter tocado sob a regência do famoso Mestre José Maurício. Rossini aceitou o convite de fazer parte da Lira Santa Cecília. Após um mês na cidade, o Maestro retomou à fazenda devolvendo a alegria à Clara Vitória e ao Major.
Com ajuda de Rossini, iniciou a organização da orquestra. Por esta ocasião, o Maestro cometeu seu primeiro delito: passou uma noite com a cozinheira da estância que fora visitá-lo no quarto. Ele, por saber que a menina escutava tudo do outro lado, não pode deixar de provar sua hombridade. Na manhã seguinte, o fato espalhou-se, pois a menina contara tudo o que ocorrera à ama-de-casa. A cozinheira tinha sido mandada embora e o Major resolveu passar por cima do fato, deixando que o Maestro permanecesse na estância, pois "os homens mais erram pelas audácias das fêmeas".
Algum tempo depois, o Major Eleutério anunciou o concerto de Páscoa, a fim de mostrar para toda sociedade da vila sua pequena orquestra. Dona Brígida aceitou o evento com a pretensão de aproximar a filha. de Silvestre Pimentel. Na data marcada, reuniram-se na capela da estância os vizinhos do Major, entre eles o importante amigo Paracleto Mendes, o qual vinha com a família prestigiar aquela loucura do Major. Clara Vitória estava arrumada para encantar Silvestre Pimentel.
O concerto realizou-se com sucesso enchendo o Major de orgulho. Após a apresentação, todos se dirigiram à casa para se livrar do temporal que se armava. Clara Vitória, que tratara o sobrinho do Barão de Três Passos com total indiferença, ficou para trás a fim de elogiar o Maestro. Aproveitando-se da chuva torrencial, o músico conduziu a moça até a casa, protegendo-a com seu casaco. No seu quarto, passou a querer ardentemente a jovem em um desejo maior do que podia suportar. A moça, por sua vez, não conseguia dormir pensando no Maestro que revelava, pelos ruídos produzidos no quarto ao lado, também sofrer de insônia.
Na semana seguinte, D. Brígida visitou o enfermo Barão de Três Arroios para arranjar o casamento de Clara Vitória com Silvestre Pimentel, marcando as bodas para o Natal. A fim de manter uma proximidade entre os jovens, durante o inverno foram organizados bailes após a apresentação da Lira. Mesmo com a nova do casamento, a moça não deixava, no entanto, de pensar no Maestro. Os encontros entre os dois agora se realizavam com mais freqüência às escondidas de D. Brígida. O Maestro declarou, então, que compunha uma música para ela. Agora, ele sabia que Rossini tinha razão: amava a filha do Major.
A orquestra foi convidada para tocar na Igreja da Vila de São Vicente. Enquanto esperava a apresentação, Clara Vitória lembrou-se da tarde em que, ao ver que o Maestro compunha em seu quarto, aproximou-se e entrou. Ele explicou-lhe a música, mas não conseguiu disfarçar o olhar de desejo. A jovem lembrou-se também da noite em que roubara um vinho da cozinha e, após ter tomado um copo, adquirira coragem e foi até o quarto do Maestro. Os dois trocaram carinhos e ele a beijara na boca. Ela voltara para o quarto e não tinha conseguido dormir.
Na noite seguinte, depois que todos dormiram, Clara Vitória foi ao quarto de hóspedes. Tomados de desejo, os dois entregaram-se ao sexo. Assim, enquanto D. Brígida preparava o casamento, a filha encontrava-se no quarto com o Maestro em intensas noites de amor. Nas tardes de primaveras, a orquestra realizava suas tocatas para a família e convidados à sombra de um umbu, razão pela qual o Vigário, lembrando-se de um a antiga água-forte de um pintor italiano, deu nome ao acontecimento de Concerto Campestre.

3. Crime e castigo

Retomando seus pensamentos, Clara Vitória lembrou-se da tarde que havia passado com Silvestre Pimentel no pomar durante a visita ao Barão de Três Arroios. Ali soube que não poderia se casar com aquele homem tão formoso e tão inútil. Durante o concerto na capela da Vila, Silvestre Pimentel desmaiou e foi levado para a casa do Presidente da Câmara, sob os cuidados dela. Sozinha com o moço, ela sentiu um amargor na boca. E veio junto também a certeza de que estava grávida.
Os dias corriam plácidos rumo ao verão. Clara Vitória convivia com a gravidez sem ter com quem comentar o fato. Porém os sinais iam aparecendo: certa vez vomitou pelo quarto, o que fez com que a ama, que tinha a qualidade de saber de tudo, desconfiasse da condição da jovem. Durante a prova do vestido de noiva, a costureira notou o crescimento da barriga. Desesperada, a menina pensou em visitar Siá Parteira, anciã moradora das proximidades, conhecida por impedir algumas crianças de nascer, mas desistiu ao lembrar do estado em que ficavam as criadas depois dos abortos. Atormentada, procurou o Vigário em uma das suas visitas à Estância e, em confissão, pensou em lhe contar o que escondia de todos, mas não teve coragem. O padre notou a aflição de Clara Vitória e desconfiou que, durante o passeio ao pomar, a menina tivesse se entregado a Silvestre Pimentel.
A morte do Barão de Três Arroios obrigou a orquestra a compor marchas fúnebres. Durante o funeral, Clara Vitória mostrou-se carinhosa com Silvério Pimentel e com o filho dele, pedindo que o rapaz deixasse de chamá-lo de Afilhado e o re-conhecesse como filho. Algum tempo depois da morte do Barão, Clara resolveu procurar finalmente a anciã, mas não era mais possível retirar a criança, pois já havia passado tempo demais. Atormentada, a moça procurou o músico naquela noite pensando em contar tudo a ele, mas o Maestro a esperava com uma surpresa. Com a desculpa ao Major que a orquestra precisava ensaiar em céu aberto, longe dos ruídos, levou a amante para o campo, onde a orquestra tocou a música que havia composto para ela. Neste momento, colocou a mão sobre a barriga de Clara Vitória, mostrando-lhe que já sabia de tudo e que agora só bastava escolher o nome da criança.
A moça foi tomada de pavor por se sentir descoberta e voltou desesperada para casa. Agora faltava pouco para que todos soubessem e a sua morte chegasse. Pensou em não mais esconder a barriga e mostrá-la à ama Siá Gonçalves, mas recuou, pensou em falar para Bobó, seu irmão mais moço, mas não teve coragem. Por fim, também não mais apareceu no quarto de hóspedes. O Maestro tentava fazer contato à noite quando percebia que ela não conseguia dormir, mas era em vão. Aconselhado por Rossini, aproveitou a madrugada e foi ao quarto de Clara Vitória. Ficou surpreso pela imagem da jovem que parecia esperá-lo para uma obrigação. Então, ele recuou, angustiado.
O luto pela morte do Barão não demorou muito. Logo os concertos e os bailes na estância do Major recomeçaram. Silvestre Pimentel e Clara Vitória eram vistos por todos como noivos. Em um desses eventos, a jovem passara mal e fora socorrida pelo Vigário. Em segredo de confissão, ela contou o que se passava ao Vigário, que se sentiu culpado, traído pelo Maestro em quem depositara tanta confiança. Sem saber que rumo tomar, decidiu se aconselhar com o cônego de São Gabriel, mas foi em vão, pois o mesmo estava muito velho e nem o escutava mais direito. Resolvido a tomar alguma decisão, chamou Silvestre para uma conversa e disse a ele que a moça estava muito doente e precisava casar-se para que, se algo acontecesse, a morte a encontrasse em pleno estado do matrimônio. O Vigário lembrou que essa obra de caridade faria com que ele se livrasse da culpa por não ter aceito como filho aquele que todos conheciam como o Afilhado.
O padre, então, tentou convencer o Major e D. Brígida a antecipar a data do casamento, dizendo que a moça estava "desgraçada de amor". Os pais recusaram o pedido, pois desonrariam o nome da família se casassem a filha antes do tempo marcado. Foi numa tarde em que a moça não quis receber Silvestre, que a mãe, levando-a para sala, tentou entender o que se passava. Então, como se um sopro de Santo Antonio chegasse aos seus ouvidos, ela descobriu a gravidez da filha. "Você está grávida!"
Partiu para cima da filha e, se não fosse a intervenção de Siá Gonçalves, tê-la-ia assassinado ali mesmo. Depois, D. Brígida procurou o marido e contou-lhe tudo. Tomado de raiva, e em companhia do filho e do capataz, foi à casa de Silvestre Pimentel a fim de matar o rapaz e lavar sua honra. Silvestre tentou lhe explicar que tudo não passava de um terrível engano. Em vão. Debaixo de uma saraivada de tiros, o jovem caiu ferido. O Major, imaginando-o morto, voltou para casa.
No dia seguinte, chegou a notícia de que ele apenas se encontrava ferido. O Major Antônio Eleutério ordenou, então, que o capataz levasse a menina para a tapera no boqueirão. Em seguida mandou, sobre protesto de D. Brígida, pôr fogo no enxoval de Clara Vitória, determinado a apagar de vez a lembrança dela na casa. O Maestro, com remorso pelo ocorrido, quis ir até a tapera rever seu amor, mas foi barrado pelos capangas do Major. Siá Gonçalves lhe disse que o desejo da jovem era que ele fosse embora de vez. Ele, para fugir da morte, resolveu seguir para Porto Alegre.
As notícias da menina chegavam através do capataz, responsável por levar às escondidas um cesto de comida a pedido de Siá Gonçalves. A moça, imersa em solidão e entregue à própria sorte, esperava o bebê. O Vigário ainda tentara uma solução junto a Silvestre Pimentel, mas este preparava sua mudança para São Gabriel. Em Porto Alegre, Rossini e o Maestro encontraram trabalho na orquestra da Catedral. Entregavam-se a noitadas, porém o músico não conseguia esquecer o seu amor.
A estância era agora evitada por todos. Ninguém aceitava a atitude do Major, que chegou a proibir o Vigário de aparecer por lá e depois entrou em profunda depressão, bebendo compulsivamente. Aos domingos, na capela, passou a ter alucinações enquanto acompanhava os concertos invisíveis da Lira. Os filhos tentavam manter a ordem na estância e D. Brígida consumia-se na solidão de seu quarto. De certa feita, o capataz voltou do boqueirão dizendo que a menina estava banhada em sangue. Em companhia de Siá Parteira, Siá Gonçalves foi para lá e descobriu que Clara Vitória já havia do a luz a uma menina. Então, a criança foi entregue aos cuidados de uma negra da estância, sem que o Major soubesse.

4. A Redenção

Enquanto isso, em uma pensão de Porto Alegre, o Maestro recuperava suas forças, após uma doença que o deixara de cama. Na missa da catedral, havia tocado a música feita para Clara Vitória. Dias depois, arrebanhou alguns músicos e resolveu voltar à estância. Ao vê-los chegar, o Major foi assaltado por uma estranha alegria e resolveu organizar um concerto no domingo seguinte, data de seu aniversário. Convidou todos os moradores da região, mas foi avisado por Paracleto Mendes que ninguém compareceria. Com efeito, teve de almoçar sozinho e, num acesso de raiva e loucura, ordenou que o concerto fosse realizado da mesma maneira, sob o umbu.
O drama atinge seu apogeu: D. Brígida assiste a tudo com alegria vingativa. O Vigário chega ao cair da tarde e, vendo a cena, sente que algo extraordinário vai acontecer. No boqueirão, Clara Vitória ouve a música da orquestra e intui que o Maestro tinha voltado.
De repente, arma-se um temporal e, mesmo assim, o Major ordena que os músicos continuem tocando. Surpreso, o Vigário percebe que são pingos de sangue que caem do céu. O Major Antônio Eleutério, já totalmente bêbado, é colocado em sua poltrona, porém sem largar um revólver que carregava consigo, apesar do protesto dos filhos. Aproveitando-se da situação, o Maestro parte para o boqueirão. Um tiro então ecoa e o Vigário vê que o Major havia se suicidado. Rossini assiste a tudo como se tudo não passasse de uma verdadeira ópera.
A chuva já não caía e, no boqueirão, Clara Vitória percebe que alguém caminha em sua direção e logo ela descobre de quem se trata. Abre os braços e entrega-se ao "primeiro beijo de todos os beijos de sua longa vida".

O que observar

a) Publicada em 1997, a novela Concerto campestre assinala, na obra de Luís Antonio de Assis Brasil, um abandono dos grandes registros históricos que vinha produzindo nos anos anteriores, como Videiras de cristal (1990) e a trilogia Um castelo no pampa (1992-1994) e um retomo à notação mais intimista, voltada para os dramas pessoais e familiares, a exemplo de Manhã transfigurada (1982) e As virtudes da casa (1985).
b) Mesmo que o escritor rejeite a classificação de narrativas históricas conferida a suas ficções, alegando que apenas os relatos com personagens e fatos extraídos efetivamente das páginas da História mereceriam esta designação, o certo é que todas as suas obras - exceto O homem amoroso - situam-se no passado remoto da província (em especial, nos séculos XVIII e XIX), isto é, num tempo bastante anterior à existência concreta do autor. Este se vê, pois, obrigado a pesquisar a matéria-prima de seus textos, procurando em documentos e outros testemunhos escritos, os costumes, as circunstâncias e os princípios de vida de épocas irremediavelmente desaparecidas. O fato de fazê-las ressurgir cheias de vitalidade e frescor diante de nossos olhos não impede que estes romances e novelas sejam rotulados como históricos. São históricos, em síntese, por se reportarem a mundos mortos que não foram vivenciados diretamente pelo ficcionista.
c) Concerto campestre estrutura-se sobre dois temas interligados. O primeiro é o entusiasmo do Major Antonio Eleutério pela música que o leva a constituir uma orquestra em sua fazenda. O segundo são as conseqüências dramáticas que advêm da criação da orquestra, centradas no conflito entre a paixão e os valores patriarcais, núcleo central do enredo.
d) A afeição do Major pela música é um dos achados do texto. Ela ocorre quando o fazendeiro e charqueador já se encontra em idade madura e surpreende pelo fato dele ser um homem rústico, sem educação, a quem a arte nunca interessara. Montar a orquestra toma-se a sua obsessão e assim nasce, com o apoio do Vigário de São Vicente e com a direção do Maestro, um músico mineiro, este estranho conjunto formado por instrumentistas semi-vagabundos, capaz de espantar e mesmo de comover gente de uma sociedade tosca e primitiva. É de tal ordem a importância da orquestra (Lira Santa Cecília) para o Major que, após a dispersão do grupo, nada mais tem sentido em sua vida.
e) A música pontua todos os momentos dramáticos da narrativa. É ouvindo o maestro tocar bandolim em seu quarto que Clara Vitória descobre se apaixonada. (Não há como ignorar a sugestão do episódio em que Ana Terra se deixa seduzir pela emoção ouvindo Pedro Missioneiro executar sua flauta em O continente.) É também a peça composta para ela pelo Maestro que desencadeia os sentimentos vulcânicos que terminarão por conduzir a jovem à cama do mulato mineiro. Contudo, é no epílogo da novela que a referida composição exerce um papel decisivo e paradoxal: por um lado, acompanha a autodestruição do Major, em meio à tempestade e à chuva de sangue; por outro, anuncia à Clara Vitória, prisioneira no boqueirão, que o seu amado retomou e está lhe enviando um sinal exasperado de afeto.
f) o motivo do amor proibido pelas convenções - tema essencial da obra - é muito antigo na história literária e encontra seu apogeu no movimento romântico, sendo Os sofrimentos de Werther, de Goethe, a expressão mais perfeita deste enfrentamento quase sempre trágico. (Trágico porque em geral os amantes estão fadados à derrota diante dos obstáculos familiares, morais ou sociais.) Na literatura brasileira do século XIX, encontramos vários romances que lidam com essa temática: Inocência, do Visconde de Taunay, O seminarista, de Bernardo Guimarães, Lucíola, de José de Alencar ou até mesmo Dom Casmurro, de Machado de Assis.
g) As proibições familiares são mais impositivas e rígidas na sociedade agrária, onde os pais exercem um domínio despótico sobre os filhos. (Lembremos outra vez de Ana Terra.) Por isso, é nos romances de cenário rural que o confronto entre as normas patriarcais e a paixão dos amantes mais se intensifica, chegando quase sempre, em seu epílogo, à violência física e moral, quando não à destruição completa, em geral a dos enamorados.
Em Concerto campestre, a imposição dos valores paternos e o próprio ambiente rural, sintetizado na fazenda e na realidade fantasmagórica do boqueirão, parecem indicar que tudo marcha para um desfecho trágico, o que afinal acaba não ocorrendo.
h) A paixão de Clara Vitória pelo Maestro é terrivelmente transgressora tanto por razões étnicas quanto por razões morais e sociais. Etnicamente, a jovem branca não pode se apaixonar por um mulato. Moralmente, ela está comprometida (pela mãe) com outro jovem. Além disso, se entrega ao amante, num procedimento então inaceitável. Por fim, socialmente, ela é rica e o músico, um pobre-diabo, e o casamento entre jovens de classes distintas jamais se consumava, pelo menos no campo, onde os preconceitos eram mais fortes que na cidade.
i) O casamento arranjado pelos pais - fonte de muito infortúnio para os jovens da época - cristaliza se na escolha que D. Brígida faz de Silvestre Pimentel para ser o marido da filha, naturalmente sem consultá-la. Na ocasião, o Maestro emite uma lúcida reflexão sobre os dramas que tais escolhas geravam:
Esses matrimônios resolvidos pelos pais eram comuns entre as famílias bem-postas, em qualquer lugar do Brasil. Sabia o resultado: mulheres doentes de solidão e desespero, mastigando rezas infindáveis em frente às vidraças de seus oratórios seculares e vivendo nos limites do pecado; a conter tanta seiva, a aspereza dos maridos, a diligência dos padres e o terror do inferno.
j) Os apaixonados formam uma dupla de personagens verossímeis e plenos de humanidade. O Maestro, talentoso e mulherengo, mas ressentido com a questão de sua cor, representa o poder de sedução do artista sobre os corações sensíveis. Já Clara Vitória - na linha de inúmeras protagonistas de Assis Brasil - traduz um tal gosto pela vida, uma tal ânsia de ser feliz e de exercer sem repressões a sensualidade exuberante, um tamanho desejo de escolher seu próprio destino, que os leitores ficam a seu lado e admiram sua coragem de enfrentar o sistema patriarcal.
k) A visão anti-preconceituosa que Clara Vitória tem sobre a existência manifesta-se não apenas no amor que nutre por um mulato pobre, mas na forma despachada com que ela trata o problema do Afilhado (filho natural de Silvestre), induzindo o rapaz a assumir a criança como filho legítimo.
l) O instinto de sobrevivência e vontade de manter a lucidez de Clara Vitória sintetizam-se na belíssima cena em que ela, sozinha no boqueirão, percebe estar caindo em um abismo de mudez, e passa então, com gritos, a designar as coisas que a rodeiam:
Clara Vitória baixou a cabeça e de imediato deu-se conta de que mandara embora o capataz sem nenhuma palavra, e que logo não saberia mais falar, e, alucinada, começou a gritar para o que via: passarinho! árvore! nuvem! sol! sol! nuvem!
m) Na galeria de personagens importantes ainda que não examinados em sua interioridade avultam D. Brígida, personalidade caricatural em sua ignorância e visão mesquinha da existência, e a figura de Silvestre Pimentel, o "prometido" de Clara Vitória, que condensa os valores opostos aos do Maestro: apesar de branco, rico e fisicamente atraente, é a um só tempo tosco e insensível.
n) Entre os personagens secundários destacam-se o Vigário de São Vicente, admirador da música e bastante tolerante e humano se comparado aos padres de sua época; Rossini, o rabequista amigo e confidente do Maestro, e que desenvolve uma teoria vinculando o amor proibido à ópera. (Aqui, há forte ressonância de Dom Casmurro, pois Marcolini, um velho tenor italiano, apresenta a Bento Santiago a teoria da similitude entre a vida e a ópera.)
Já os criados Siá Gonçalves e o capataz - embora originalmente fiéis a seus patrões - acabam comovidos com o drama de Clara Vitória e, por piedade, tratam de ajudá-la, cada qual a sua maneira.
o) O titula da novela nasce dos concertos campestres promovidos pelo Major na fazenda:
Logo começavam os calores de uma primavera precoce, aturdindo os pássaros e despertando a letargia das árvores. Houve o início dos concertos campestres. A Lira Santa Cecília vinha para frente da casa e, sob o umbu, realizava suas tocatas para a família e os convidados.
Os concertos campestres correspondem também ao momento em que Clara Vitória começa a se entregar com loucura ao Maestro, descobrindo-se totalmente apaixonada:
Tudo, seu corpo, as pessoas, os campos, tudo era novo, pleno de uma nova existência.
p) Outro achado do texto é o boqueirão. Cenário de grande apelo dramático, este ermo, dominado por aranhas, morcegos, ventos gélidos, ruídos assustadores e gritos inumanos, como se de fantasmas, é quase um espaço gótico com seus horrores e sua desolada solidão.

Estrutura narrativa e linguagem

a) Relatada por um narrador onisciente em terceira pessoa, a história é linear em sua superfície, já que na camada mais profunda da mesma há, nos dois primeiros capítulos, um sutil desvio na seqüência cronológica. O processo é o seguinte: o narrador revela os acontecimentos (a primeira apresentação da orquestra, por exemplo) e, páginas adiante, retorna aos mesmos, mas agora sob novos ângulos e visões, acrescentando outros significados a eventos que já nos tinham sido mostrados. No caso, as perspectivas de D. Brígida e Clara Vitória sobre a formação da Lira Santa Cecília e sobre o que iria acontecer no dia do concerto de Páscoa modificam e ampliam o teor daquilo que antes fora apenas uma apresentação musical. Também a paixão de Clara pelo Maestro é revelada antes que as circunstâncias que a desencadearam e a tornaram possível.
b) À linguagem elevada e precisa - que sempre o caracterizou - Assis Brasil incorpora certas expressões de época, certo gosto passadista nos vocábulos e imagens, certa tendência a um tom sentencioso, como se pode ver nos exemplos abaixo:
"percorreu os lugares de má-vida onde havia música..."
"ainda não descobrira os confortos da moralidade"
"Ficaria à espera, pois a paciência é a qualidade de quem ama. "
"Achava-o engraçado, o primeiro passo para aniquilar qualquer possibilidade de amor."
c) Os recursos plásticos (visuais) - um dos aspectos mais positivos do ficcionista sul-riograndense - são visíveis em várias e inesquecíveis cenas. A mais espetacular é a chuva de sangue que ocorre em meio à tempestade que acompanha o desabamento do mundo pessoal do Major. Enquanto este, totalmente bêbado, dança ao som da orquestra em sua última apresentação na fazenda, as gotas viscosas de sangue caem sobre as pessoas como se fosse o apocalipse.
Há outros momentos de grande beleza visual, como a última cena da novela (Clara Vitória nua no arroio à espera do seu amado); ou ainda, a apresentação especial da orquestra para a jovem realizada ao amanhecer, no meio do campo; ou mesmo sua chegada ao fantasmagórico boqueirão, com seu arroio de "águas de chumbo", suas "nuvens baixas e inexplicáveis", seus "uivos de alma penada".

* Fonte: Leituras Obrigatórias Ufrgs 2009, Editora Leitura XXI. Análise de Juares Souza e Sergius Gonzaga

Nenhum comentário:

Postar um comentário