segunda-feira, 2 de novembro de 2009

Juan Carlos Onetti por Wilson Alves-Bezerra*


O poço/Para uma tumba sem nome, de Juan Carlos Onetti. Tradução de Luis Reyes Gil. Planeta do Brasil, 168 páginas. R$ 38



Quando se diz que o uruguaio Juan Carlos Onetti (1909-1994) é um “escritor para escritores” certamente um dos aspectos que está em questão é a constante inquietação presente em sua obra quanto ao contar, suas consequências e suas impossibilidades. É o que se pode perceber no volume lançado pela Planeta, que traz as novelas de Onetti: “O poço” (1939) e “Para uma tumba sem nome” (1959), duas pequenas obras-primas, que precisaram esperar pelo centenário do escritor — celebrado em 1 de julho — para chegar ao Brasil.

“O poço”, publicado às vésperas da Segunda Guerra, quando o autor tinha 30 anos, é a estreia literária de Onetti. É o relato em primeira pessoa de Eladio Linacero, um homem que, aos 40 anos, sozinho e sem tabaco, trancado em sua casa suja, resolve escrever a história de sua vida, apesar de não ter muito o que contar. O poço é a história desta escrita e da impossibilidade de uma transcendência através do verbo. Diante da dificuldade de contar uma vida mal vivida, Linacero recorre a outra instância, a dos sonhos, como uma fonte de relatos dignos de narração. O projeto do narrador-escritor, exposto nas primeiras linhas da novela, é alternar o relato de um acontecimento vivido e de um sonho, “Ficaríamos todos contentes”, diz ele em sua ironia proto-existencialista. Pois é nos sonhos que a garota com quem o sexo na adolescência foi recusado se oferece nua em uma cabana de troncos típica de um conto de Jack London.

Mas para além de serem os sonhos o contraponto bem-sucedido para uma vida de fracassado, a instância do sonhado mostra-se fundamental na construção da narrativa, a tal ponto que é possível qualificar O poço como novela onírica. Os curtos episódios que se sucedem estão pautados pelas livre associações do narrador, e encadeiam lembranças, aventuras, tentativas frustradas de contar os sonhos, que compõem a fugidia e movente estrutura da narrativa. Mas a instância onírica tem ainda outra função para Linacero: ela parece abrigar uma sorte de compensação, mas há mais. Não satisfeito com simplesmente sonhar, ele ainda quer trazer ao mundo as astúcias da ficção sonhada. É quando o fracasso torna-se exemplar: mesmo aqueles a quem o narrador idealiza como puros, o poeta Cordes e a prostituta Ester, são incapazes de compreender a suposta pureza do que ele conta. O que falha na vida, e se conserta no sonho, não regressa à vida — Linacero descobre. Prevalecem o desconcerto e a intransmissibilidade: “O ruim é que o sonho não transcende, não se inventou a forma de expressá-lo; o surrealismo é retórica.” O dilema de Eladio parece ter sido não conseguir realizar seu ideal de pureza e tampouco abrir mão dele. E ficcionalizando isto, o escritor Onetti traça os limites da literatura.

Em “Para uma tumba sem nome” (1959), publicado vinte anos depois de “O poço”, as vozes se multiplicam, mas não o estranhamento vivo, característico de Onetti, quanto às astúcias e limites do contar. Contrariamente a “O poço”, esta novela é considerada menor na trajetória de Onetti, não tendo merecido mais que uns poucos parágrafos em um recente livro de Vargas Llosa sobre a obra do uruguaio, que podem ser resumidos no lapidar julgamento: “não flui com a desenvoltura de suas melhores histórias” (p. 143). Eis o encanto da dificuldade estimulante do livro: uma história truncada que não consegue nunca ser totalmente contada ou compreendida. Trata-se da estranha narrativa de um jovem que se encarrega do enterro de uma mulher que, como se saberá adiante, andava com um bode pelas estações de Buenos Aires, pedindo dinheiro.

O narrador-personagem, mas não personagem principal, é um médico com pendores de escritor, que se coloca na narrativa de uma forma receptiva e lateral; de uma certa forma, ele é quem recebe o relato da estranha história sobre a recém-falecida Rita e seu bode. A história da mulher vai se constituindo a partir do que o narrador observou em seu enterro; mas, principalmente, a partir do truncado e contido relato de Jorge Malabia, um jovem que conviveu e amou esta mulher e que, às portas do cemitério, veio caminhando na companhia do bode, já velho e ferido. Ainda no cemitério, Jorge praticamente implora ao médico e narrador para que este lhe pergunte sobre a morta: “Mas o senhor, por que não pergunta? A pata do bode não lhe interessa. Pergunte da mulher, da morta. Se era amante, se nos casamos em segredo, se era minha irmã prostituída.”

Surge para o leitor a pergunta: quando de fato uma história de amor termina: depois de ser vivida ou só quando é contada? E ainda a fácil associação do amor terminado e a imagem deste bode manco que não se sabe onde colocar. É quando intervem o médico, este personagem silencioso de quem Jorge não espera um só comentário, apenas que escute, pergunte e dê sentido ao ato brutal de contar. Percebe-se nesta parte da história uma sorte de reescritura da cena frustrada do relato dos sonhos de Eladio Linacero — de “O poço” — para a prostituta e o poeta; em “Para uma tumba sem nome”, tudo aquilo pelo que o jovem Jorge parece esperar é alguém que possa receber o seu relato.

De maneira mais ou menos errática, com contados encontros, estabelece-se esta relação entre o médico e Jorge; na narrativa cheia de vicissitudes, interrupções, interpolações, há espaço para a dúvida, a vacilação, própria da rememoração, na qual aquele que conta desdobra-se em personagem e narrador.

Para o leitor, como para o médico-narrador, a história vai se armando com os restos recolhidos pelo médico. E, neste mosaico falho, já não se sabe se era realmente amor o que movia Jorge (o leitor de “O poço” o saberá), ou algum motivo torpe, se é sublime o amor, ou se o amor, como os homens, é torpe também. Daí talvez advenha a frustração de Vargas Llosa diante desta novela: ela se resiste a ser relato fluente, distração fácil; ela incomoda, pois à medida que o relato avança e o médico crê estar quase completando o mosaico, este outra vez ele se estilhaça.

Todas as testemunhas vão se eximindo quanto à veracidade do narrado; o absurdo da vida de Rita não tem autoria. (Quem é o autor da história de amor que se vive?) Assim, em torno à tumba sem nome, ao cemitério vazio, ao amor não cumprido, erige-se a narrativa que, se sobrepondo a uma realidade absurda, a justifica.

A tradução das duas novelas, a cargo de Luis Reyes Gil, é mais fiel aos tempos politicamente corretos em que vivemos que à agressividade da prosa de Onetti. Assim, quem cotejar a velha edição barata da Editora Arca com nova edição da Planeta notará a pulcritude verbal à qual tem de se submeter o Onetti nacional. Por exemplo, “espíritu de forzador” perde a conotação de relação sexual forçada para tornar-se um esportivo e anódino “espírito dinâmico”; a “hermana emputecida” vira “irmã prostituída”, perdendo o radical de uso corrente em português e a eloquência do original. Deslizes de fácil correção para as futuras edições, às quais a obra de Onetti certamente faz jus.

Texto do portal 'O Globo'

*WILSON ALVES-BEZERRA é professor da área de espanhol da Universidade Federal de São Carlos, autor de Reverberações da fronteira em Horacio Quiroga (Humanitas/FAPESP) e tradutor.

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