domingo, 22 de novembro de 2009

Conto: A Carta de Ronaldinho (Mia Couto)


A Carta de Ronaldinho

"O problema não é ser mentira.
É ser mentira desqualificada"
Provérbio da Munhava


Uns aprendem a andar. Outros aprendem a cair. Conforme o chão de um é feito para o futuro e o de outro é rabiscado para sobrevivência. Filipão Timóteo pisava ou era pisado pelo chão ? O mundo do velho já semelhava a um relvado de futebol: ali ele fintava o tempo, esticando a partida com a vida para período de compensação.
- Me restam duas saídas, sorria ele, ou perder ou ser vencido.
E o dente avulso, já de tão solto, abanava com riso. No bar da Munhava, o velho reformado retorcia a volta ao destino. No meio do cervejeiral, Filipão se vingava. Prova era o salto fantástico e o grito que, de quando em quando, se escutava na rua:
- Gooolooo !
O pulo é o desajeito humano de ensaiar um voo. A alegria de Filipão só podia ser medida em asas, tanto de céu eram seus brados. Sozinho no Bar, o velho celebrava o golo da sua equipe. As pessoas passavam e olhavam pelo vidro Filipão aos saltos festejando vitórias. Como um peixe dentro do aquário, esperando que a vidraça afastasse a chegada do fim.
Quando saltava, caía-lhe o aparelho da surdez e ele passava o resto do tempo, de gatas, procurando o salvador instrumento entre as imundícies do chão. Para tão pouco voo, tanto quadrupedar-se pelo chão !
As pessoas sabiam: não havia televisor. O bar era pobre e, para além do balcão, não sobrava apetrecho. O que havia na parede era um desenho de um ecrã rabiscado a carvão. Filipão desenhara o televisor com detalhe de engenheiro. E ali estavam compostos com perfeição os botões, a antena, os fios. Pobre não festeja por causa da alegria. A alegria é que se instala, convidada, e faz a festa ter casa e causa.
Filipão chegava manhã cedo, carregava no falso botão do inexistente aparelho e se sentava na habitual mesa, ao fundo da sala. Pedia a habitual cerveja e sorvia o líquido como se bebesse pelos olhos lentos. Bebia todo ele, a sua alma era uma boca. Estalava a língua nos dentes, ruidosamente. Depois rabiscava num velho e seboso papel uns desenhos: as tácticas do jogo. Filipão organizava os esquemas tácticos, arquitectava a força anímica. Que se estava em pleno Mundial, a distracção é a morte do guarda-redes.
Depois, já deitadas as instruções, o velho vinha à porta da taberna e gritava para o exterior:- Já começou !
E se adentrava para assistir a mais um desses jogos que só ele testemunhava na sua imaginação.
Até que, um dia, vieram buscá-lo. Eram os filhos que viviam na cidade. O mais velho disse:
- Venha pai, não queremos que continue sozinho aqui na vila.
- Já todos se riem, pai - confirmava o mais novo.
Filipão ajustou o aparelho auditivo como se não estivesse ouvindo bem. Não iria nem arrastado. Que ali estava seguindo o Mundial. Mais que isso: dando instruções técnicas. Ele o "mister", o senhor sem anéis.
- Desde quando pai ? Desde quando é que esse Mundial se arrasta ?
Os outros fizeram sinal para que não se usasse os argumentos da realidade. Seria pior. Deixassem-no crer que nesse imaginário televisor desfilavam verdadeiros jogos, capazes de fabricar autenticas alegrias. A realidade não é um sonho fabricado pelos mais ricos ?
E assim se ficou. Filipão no sonho do jogo, os outros no jogo dos sonhos. Um dia, o filho mais novo trouxe uma carta. Era um papel sério, com carimbo e redigido em máquina.
- O que é isso ?
- Isso é para o senhor, meu pai.
- Não sabe que eu não leio letras ?
O filho ajustou os óculos e leu em voz alta. Era uma convocatória da Federação Nacional de Futebol. Congratulando-o pelo seu contributo para o desporto e pelos os galardões alcançados pela selecção. Chamavam-no para ir para a capital. Para descansar junto da família.
- Essa carta é falsa !
- Como falsa ?! Tem carimbo, tem assinatura, tem tudo.
-Veja esta outra carta !
E o pai estendeu um envelope ao filho. Tinha selo do Brasil e estava assim endereçada: Senhor Filipão Timóteo, Bar da Munhava. Assim, sem emenda nem gatafunho. Em baixo, a assinatura bem desenhada: Ronaldinho Gaúcho. O moço foi saindo, sem fôlego para palavra. A voz do pai o fez parar.
- E já agora, meu filho...
- Sim? - o filho perguntou, sem se virar.
- Você pode-me trazer lá da cidade um pauzinho de giz que é para eu desenhar um televisor novinho ?

Conto do livro "O Fio das Missangas", de Mia Couto (Ed. Companhia das Letras)

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