quarta-feira, 11 de novembro de 2009

Cyro Martins: Porteira Fechada e A Trilogia do Gaúcho a pé


CYRO MARTINS (1908-1995)



VIDA: Nasceu em Quarai, na fronteira sudoeste, filho de um pequeno comerciante da região. Com 12 anos, mudou-se para Porto Alegre a fim de fazer o antigo ginásio e o curso científico no colégio Anchieta. Ingressou na Faculdade de Medicina em 1928, formando-se em 1933. Retornou a sua cidade natal, lá exercendo a atividade médica durante três anos. Conheceu então a miséria social instituída pela crescente modernização do latifúndio na campanha rio-grandense e que, em seguida, documentaria em sua obra narrativa, pois Sem rumo, que abre a célebre trilogia do gaúcho a pé, é de 1937. No ano de 1938, Cyro Martins estudou neurologia no Rio de Janeiro. Ao voltar, fixou-se de vez em Porto Alegre, de onde sairia apenas no período 1951-1955, vivendo em Buenos Aires onde realizou sua formação psicanalítica. Dividido entre a psicanálise e a literatura, o ensaio e a ficção, converteu-se numa das figuras intelectuais mais respeitadas no Rio Grande do Sul.

OBRAS PRINCIPAIS

A trilogia do gaúcho a pé: Sem rumo (1937); Porteira fechada (1944); Estrada nova (1954).
Outras obras: Campo fora (1934); Um menino vai para o colégio (1942); Sombras na correnteza (1979); O príncipe da vila (1982); Gaúchos no Obelisco (1984).

Além disso, escreveu ensaios psicanalíticos e literários.

O esforço documental, a transformação dos indivíduos em representações explícitas de classes sociais, o didatismo com que se apresenta a vida econômica e política de uma região e a descrição implacável da miséria a que estão condenadas as camadas populares que ali vivem constituem o receituário do neo-realismo de 1930, do qual Cyro Martins é uma das expressões mais acabadas.

De certa maneira, Cyro Martins parte da mesma temática de Erico Verissimo: o Rio Grande pastoril, das imensas fazendas, da grande produção de couros e carne. Mas a diferença entre ambos está no grupo social que expressam: Erico prefere fazer a saga da classe dominante de sua origem à sua decadência; Cyro opta pelos desvalidos do pampa: pequenos arrendatários, agregados, posteiros, peões, carreteiros, gente que perdeu o pouco que possuía e que vaga sem destino pela campanha.

No plano da escrita, Erico, mantém invariavelmente o padrão culto da língua, ao passo que autor da trilogia do gaúcho a pé introduz em seus textos, em especial nos diálogos, vocábulos e expressões regionais. O léxico gauchesco, de origem platina, é usado, entretanto, de maneira circunstancial, pois a linguagem dominante de suas narrações é também a urbana culta.

A TRILOGIA DO GAÚCHO A PÉ

Nas primeiras décadas do século XX, o transporte ferroviário, as cercas de arame farpado, as pastagens artificiais e a divisão das grandes propriedades tinham reduzido a necessidade de mão-de-obra na atividade pastoril. Em um conjunto de romances pungentes – designados como trilogia do gaúcho a pé*(Sem rumo, Porteira fechada, Estrada nova) – Cyro Martins fixa este processo de expulsão dos trabalhadores do campo, face à inexorável modernização capitalista das estâncias.

Despejados das fazendas, esses tipos rudes marcham para os cinturões de miséria que envolvem as cidades do pampa, sem possuir qualquer qualificação para o trabalho citadino. O desemprego é inevitável assim como a bebida e a depressão. Sem alternativas, voltam-se nostalgicamente para o passado, que pintam como uma época de ouro. Daí à marginalização é apenas um passo.


SEM RUMO



Órfão, desconhecendo pai e mãe, Chiru é criado livremente numa fazenda. Muito jovem, torna-se peão. Como é humilhado e espancado continuamente pelo capataz, o protagonista ainda adolescente foge da estância. Vira carreteiro, mas embriaga-se pela primeira vez na vida e é despedido. Nos anos seguintes, tenta sobreviver como mascate, barqueiro, pipeiro. Rouba uma “chinoca” e experimenta a nostalgia de um tempo épico:



E o que seria, se vivesse naquele outro tempo, no tempo das adagas grandes, das pilchas prateadas, das onças sonantes, das distâncias sem fim? Seria um campeiro guapo, um andarengo, um valente!

Neste momento, Chiru adere à campanha de um político oposicionista, o Dr. Rogério, que apresenta uma mensagem renovadora. Há uma forte pressão sobre Chiru para que vote no candidato da situação, mas no dia das eleições (inaugurava-se o voto secreto no Rio Grande do Sul), ele se atrapalha de tal forma na hora de depositar a cédula, que o fato é visto pelos fiscais governistas como prova de infidelidade. Dias depois é demitido de seu emprego (colocava dormentes nas obras de uma ferrovia do governo) por ser de oposição. Está agora sem horizonte, sem nenhum rumo.

PORTEIRA FECHADA

Do ponto de vista literário, Porteira fechada é o melhor resolvido dos romances de Cyro Martins. Ele começa pelo final, o suicídio João Guedes, antigo posteiro (pequeno arrendatário). Em seguida, temos um mergulho no passado do protagonista que vivia razoavelmente nas terras de um fazendeiro. Este, contudo, imerso em dívidas se enforcara. Quando a propriedade muda de mãos, o novo dono – desejoso de maior área para a criação de seu gado – expulsa Guedes, a mulher e cinco filhos. Guedes vende a ponta de gado e as benfeitorias que possuía e ruma para a cidade com a família. Sem conseguir emprego, começa a freqüentar um bolicho onde se reúnem beberrões. A falta de alternativas, leva-o a roubar pelegos de ovelhas.

Ao mesmo tempo que ingressa no crime, Guedes é corroído por grande saudade dos antigos tempos de fartura e dignidade. Até que um dia é preso em flagrante dentro de uma fazenda. Enquanto está na prisão, a esposa tenta inutilmente o auxílio de parentes ricos, uma das filhas foge de casa e outra morre de tuberculose, dada a falta de recursos. Meses depois Guedes é solto. Restam-lhe agora, do passado feliz, apenas os arreios, mas ele é obrigado a vendê-los, o que aumenta a sua humilhação e a sua disposição ao suicídio, Mata-se então com um tiro na cabeça.

O final do romance é excepcionalmente irônico. No campo, onde Guedes e a família viviam, pastam agora os bois em completa paz:


A tarde desse dia, nos campos, caiu serena, sem um frêmito. (...)

Aquilo agora era um rincão despovoado. Não se avistava um vulto de campeiro, não se ouvia um latido de cachorro numa porta de toca, não tremulava um pala endomingado, não chiava uma carreta, os arados não rompiam a terra.

Mas que engorde dava aquela invernada! Para um fim de safra, então, já com caídas para o inverno, não havia campo que se lhe igualasse. Seiscentos novilhos pastavam folgadamente entre altas cercas de sete fios e madeirama de lei que a tapavam.

O sol entrou sem grandes esplendores. A noitinha caiu suavemente.

Que paz naqueles campos!

ESTRADA NOVA

É o romance em que Cyro Martins melhor descreve o processo sócio-econômico da modernização e as mudanças que ela na vida pastoril gaúcha. O relato começa com o suicídio de Policarpo, um velho gaúcho que expulso do campo, viera para Porto Alegre. Assiste a seu enterro, Ricardo, jovem contabilista, oriundo da campanha. O pai de Ricardo, Janguta, é um pequeno arrendatário e o rapaz temeroso de que o pai terminasse seus dias sozinho e na miséria, como Policarpo, resolve visitá-lo.

As terras onde vive o pai de Ricardo pertencem ao coronel Teodoro, estancieiro conservador e aterrorizado com a expansão mundial do comunismo. Teodoro quer o fim do arrendamento e ordena ao delegado de polícia que expulse Janguta imediatamente. Ricardo, recém-chegado, enfrenta o latifundiário que passa a ver o rapaz como um perigoso bolchevista.

A partir daí, de maneira mais ou menos desordenada, o foco narrativo muda para a cidade próxima, onde forças políticas conservadoras e progressistas se defrontam. O prefeito, aberto às mudanças políticas, identifica em Ricardo um lutador da evolução social, mas este, perseguido pelos esbirros do coronel Teodoro, resolve voltar para a capital, com a certeza de que um futuro melhor – alicerçado na luta política – já se desenha no horizonte. E é a mesma esperança que dá forças a seu pai, Janguta. Ainda que mandado embora das terras do coronel Teodoro, o velho ruma para a cidade com a esperança em dias de maior justiça e igualdade.


Estrada nova (Ainda o processo de expulsão da terra, mas agora atenuado pela perspectiva de uma sociedade mais justa Neste romance, Ricardo, filho de um peão, migra para Porto Alegre, consegue um emprego e toma consciência do servilismo e da falta de perspectivas dos gaúchos pobres do campo. )

* Não se trata de uma trilogia como O tempo e o vento, pois não há uma seqüência geracional-familiar entre os romances. O que os unifica, de fato, é que mostram o mesmo mundo sob a mesma ótica dos setores marginalizados. Pode-se especular, todavia, que há neles uma continuidade sócio-histórica da seguinte ordem: Sem rumo é o princípio do processo de expulsão do campo, Porteira fechada expressa o momento de maior desespero do gaúcho a pé, levado ao suicídio, e Estrada nova, por fim, já desenha uma esperança para os pobres da campanha.

Extraído de: Terra Educação - Prof. Sergius Gonzaga

Nenhum comentário:

Postar um comentário