segunda-feira, 25 de maio de 2009

Literatura Comentada: "Ao Respeitável Público" (Crônica de Rubem Braga)


Ao Respeitável Público

Chegou meu dia. Todo cronista tem seu dia em que, não tendo nada a escrever, fala da falta de assunto. Chegou meu dia. Que bela tarde para não se escrever!

Esse calor que arrasa tudo; esse Carnaval que está perto, que vem aí no fim da semana; esses jornais lidos e relidos na minha mesa, sem nada interessante; esse cigarro que fumo sem prazer; essas cartas na gaveta onde ninguém me conta nada que possa me fazer mal ou bem; essa perspectiva morna do dia de amanhã; essa lembrança aborrecida do dia de ontem; outra vez, e sempre, esse calor, esse calor, esse calor…


Portanto, meu distinto leitor, minha encantadora leitora, queiram ter a fineza de retirar os olhos desta coluna. Não leiam mais. Fiquem sabendo que eu secretamente os odeio a todos; que vocês todos são pessoas aborrecidas e irritantes; que eu desejo sinceramente que todos tenham um péssimo Carnaval, uma horrível quaresma, um infelicíssimo ano de 1934, uma vida toda atrapalhada, uma morte estúpida!

Aproveitem este meu momento de sinceridade e não se iludam com o que eu disser amanhã ou depois, com a minha habitual falta de vergonha. Saibam que o desejo mais sagrado que tenho no peito é mandar vocês todos simplesmente às favas, sem delicadeza nenhuma.

Por que ousam gostar ou aborrecer o que escrevo? O que têm comigo? Acaso me conhecem, sabem alguma coisa de meus problemas, de minha vida? Então, pelo amor de Deus, desapareçam desta coluna. Este jornal tem dezenas de milhares de leitoras; por que é que, no meio de tanta gente, vocês, e só vocês, resolveram ler o que escrevo? O jornal é grande, senhorita, é imenso cavalheiro, tem crimes, tem esporte, tem política, tem cinema, tem uma infinidade de coisas. Aqui nesta coluna, eu nunca lhes direi nada, mas nada de nada, que sirva para o que quer que seja. E não direi porque não interessa; porque vocês não me agradam; porque eu os detesto.

Portanto, se a senhorita é bastante teimosa, se o cavalheiro é bastante cabeçudo para me ter lido até aqui, pensem um pouco, sejam bem-educados e dêem o fora. Eu faço votos para que todos vocês amanheçam amanhã atacados de febre amarela ou de tifo exantemático. Se houvesse micróbios que eu pudesse lhes transmitir assim, através do Jornal, pelos olhos, fiquem sabendo que hoje eu lhes mandaria as piores doenças: tracoma, por exemplo.

Mas ainda insistem? Ah, se eu pudesse escrever aqui alguns insultos e adjetivos que tenho no bico da pena! Eu lhes garanto que não são palavras nada amáveis: são dessas que ofendem toda a família. Mas não posso e não devo. Eu tenho de suportar vocês diariamente, sem descanso e sem remédio. Vocês podem virar a página, podem fugir de mim quando entenderem. Eu tenho de estar aqui todo dia, exposto à curiosidade estúpida ou à indiferença humilhante de dezenas de milhares de pessoas.

Fiquem sabendo que eu hoje tinha assunto e os recusei todos. Eu poderia, se quisesse, neste momento, escrever duzentas crônicas engraçadinhas ou tristes, boas ou imbecis, úteis ou inúteis, interessantes ou cacetes. Assunto, não falta, porque eu me acostumei a aproveitar qualquer assunto. Mas eu quero hoje precisamente falar claro a vocês todos. Eu quero, pelo menos hoje, dizer o que sinto todo dia: dizer que se eu os aborreço, vocês me aborrecem terrivelmente mais.

Amanhã eu posso voltar bonzinho, manso, jeitoso, posso falar bem de todo mundo, até do governo, até da polícia. Saibam, desde já, que eu farei isto porque sou cretino por profissão; mas que com todas as forças da alma eu desejo que vocês todos morram de erisipela ou de peste bubônica.

Até amanhã. Passem mal.



(Rubem Braga)



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COMENTÁRIO

Inicialmente, cumpre aqui destacar que Braga constitui um verdadeiro fenômeno por ter adquirido perenidade como escritor de talento reconhecido e respeitado não apenas pelo público, mas pela crítica, mesmo dedicando-se a um gênero considerado “menor”, efêmero, como a crônica.

Nesse sentido, retomamos uma idéia já explanada aqui no blog (postagem sobre o gênero cônica): o cronista por excelência tem seu próprio público, seu leitor fiel com quem se estabelece uma relação de cumplicidade. Há um ‘pacto’ presumido entre o colunista e o leitor, no qual, em troca da fidelidade deste, aquele se apresenta com características temáticas e estilísticas relativamente estáveis.

É nesse aspecto que a leitura da crônica "Ao Respeitável Público" torna-se particularmente interessante. Conhecendo-se o ‘espírito’ dos textos de Braga, espera-se dele uma escrita cordial, uma predisposição benigna de solidarizar-se com qualquer criatura humana, especialmente aquelas mais fragilizadas pelo contexto social de seu tempo. O Braga habitual oferece ao seu leitor imagens poéticas de rara sensibilidade e delicadeza. O compromisso de fazê-lo sempre, a exigência de apresentar-se sempre voltado de forma altruísta ao outro é tarefa hercúlea, provavelmente não percebida por aqueles que se alimentam do cronista.

Então, num exercício de metalinguagem, Braga se permite um momento de catarse. O tema da falta de assunto, solução que todo cronista usará um dia, se apresenta sob a forma de desabafo. A polidez dá lugar a um tom agressivo e irônico, que, de certa forma, o leitor acredita até o final irá dissipar-se, o que acaba, de fato, não ocorrendo.

O próprio título remete a uma saudação típica dos espetáculos circenses. O mestre de cerimônias dirige-se aos seus espectadores, conduzindo os acontecimentos. De certa forma, há uma referência a essa expectativa frívola do público pela sua ração diária de entretenimento e uma inconformidade do escritor com essa situação.

Assim, Braga conduz o texto numa espécie de ‘diálogo desaforado’ (na verdade, um monólogo) com o leitor, a quem se dirige ironicamente como “respeitável”, “distinto leitor”, “encantadora leitora”, promovendo uma ruptura com o pacto já mencionado. Em referências explícitas ao veículo em que publica o texto, o autor irá testar a fidelidade de seu público, remetendo-o a outras colunas ou sessões do jornal. Àqueles que insistem em continuar lendo, Braga termina dizendo:

“Amanhã eu posso voltar bonzinho, manso, jeitoso, posso falar bem de todo mundo, até do governo, até da polícia. Saibam, desde já, que eu farei isto porque sou cretino por profissão; mas que com todas as forças da alma eu desejo que vocês todos morram de erisipela ou de peste bubônica.
Até amanhã. Passem mal.”.

E você, o que achou da crônica? Se fosse o leitor, como reagiria ao abrir o jornal e deparar-se com esse texto? Deixe aqui o seu comentário!

Um comentário:

  1. i really like speaking spanish, my favorite word in spanish is autobus. but i am really sick today so i might no be coming so school ,how sad

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