terça-feira, 26 de maio de 2009

Poesia Africana: Agostinho Neto


Noite

Eu vivo
nos bairros escuros do mundo
sem luz nem vida.

Vou pelas ruas
às apalpadelas
encostado aos meus informes sonhos
tropeçando na escravidão
ao meu desejo de ser.

São bairros de escravos
mundos de miséria
bairros escuros.

Onde as vontades se diluíram
e os homens se confundiram
com as coisas.

Ando aos trambolhões
pelas ruas sem luz
desconhecidas
pejadas de mística e terror
de braço dado com fantasmas.

Também a noite é escura.



Adeus à hora da largada


Minha Mãe
(todas as mães negras
cujos filhos partiram)
tu me ensinaste a esperar
como esperaste nas horas difíceis

Mas a vida
matou em mim essa mística esperança

Eu já não espero
sou aquele por quem se espera

Sou eu minha Mãe
a esperança somos nós
os teus filhos
partidos para uma fé que alimenta a vida

Hoje
somos as crianças nuas das sanzalas do mato
os garotos sem escola a jogar a bola de trapos
nos areais ao meio-dia
somos nós mesmos
os contratados a queimar vidas nos cafezais
os homens negros ignorantes
que devem respeitar o homem branco
e temer o rico

somos os teus filhos
dos bairros de pretos
além aonde não chega a luz elétrica
os homens bêbedos a cair
abandonados ao ritmo dum batuque de morte
teus filhos
com fome
com sede
com vergonha de te chamarmos Mãe
com medo de atravessar as ruas
com medo dos homens
nós mesmos

Amanhã
entoaremos hinos à liberdade
quando comemorarmos
a data da abolição desta escravatura

Nós vamos em busca de luz
os teus filhos Mãe
(todas as mães negras
cujos filhos partiram)
Vão em busca de vida.


*Poemas extraídos do livro "Sagrada Esperança (1974)"

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"A poesia de Neto traz o reconhecimento de que nunca se está só, de que não se pode ignorar a presença do outro, mesmo que o outro reduza suas possibilidades de ser. O outro, nas palavras de Agostinho neto, mistura-se ao Eu-angolano, define-o, mas não lhe rouba as origens. Antropofagicamente, o outro é assumido, compondo a imagem autêntica do ser angolano contemporâneo: ser África porque, ' calibanescamente', o outro - que historicamente determinou os desvios da cultura originária angolana - se fez presença no corpo de Angola. Ser África dos caminhos entrecruzados, mas fazer-se África."
("O Eu e o Outro em Sagrada Esperança" de Marcelo José Caetano - Caderno CESPUC de pesquisa PUC - Minas - BH, n.5, abr.1999)

O Autor


António Agostinho Neto (Ícolo e Bengo, 17 de Setembro de 1922 — Moscovo ou Moscou, 10 de Setembro de 1979) foi um médico angolano, formado na Universidade de Lisboa, que em 1975 se tornou o primeiro presidente de Angola até 1979. Em 1975-1976 foi-lhe atribuído o "Prêmio Lênin da Paz".

Fez parte da geração de estudantes africanos que viria a desempenhar um papel decisivo na independência dos seus países naquela que ficou designada como a Guerra Colonial Portuguesa ou Guerra do Ultramar como também é conhecida. Foi preso pela PIDE e deportado para o Tarrafal, sendo-lhe fixada residência em Portugal, de onde fugiu para o exílio. Aí assumiu a direcção do Movimento Popular de Libertação de Angola (MPLA), do qual já era presidente honorário desde 1962.

2 comentários:

  1. Linda lembrança da África. Poemas que soam como as vozes distantes da américa do sul. Parabéns pela cara postagem.

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  2. Que lido poema adorei o que vc espirou

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