terça-feira, 1 de setembro de 2009

Caio, que era tantos


Missivista compulsivo, Caio Fernando Abreu remeteu cartas para amigos, parentes, amantes. reunidas por Paula Dip em Para sempre teu, Caio F., as epístolas compõem um amplo painel afetivo

Henrique Araújo, especial para o jornal O POVO


Caio Fernando Abreu viveu 47 anos. Morreu em 1996 vítima da Aids, doença cujas aparições em suas crônicas e contos são vistas hoje como premonitórias, morbidamente premonitórias. Embora na época – os anos perdidos da década perdida - fossem apenas presença, como o vulto da aniquilação nuclear foi para a geração pós-II Guerra. Numa das tantas cartas que escreveu, Caio registra: “Voltei da Europa em junho de 1994 me sentindo doente. Febres, suores, perda de peso, manchas na pele. Procurei um médico e à revelia dele fiz O TESTE. Aquele”. Positivo para HIV. Ano provável da infecção: 1985.

Nessa época, o escritor & mago & jornalista & viajante desassossegado andava às mil aventuras. Como não houvesse coragem alguma que o fizesse romper o lacre do envelope contendo o vaticínio, pediu que a amiga Graça Medeiros tratasse disso. Ela obedeceu. A cena que se segue é narrada por Paula Dip em Para sempre teu, Caio F. (Record, 495 páginas. R$ 59,90). Nela, vemos o escritor gaúcho desesperar-se. Lívido, ameaça saltar da janela. Dali a algumas horas, seria internado. Queria morrer, tinha de morrer. Mas não morreu, não ali, não naquele instante. Viveria tempo suficiente para falar da própria doença em programas de televisão e nas crônicas para O Estado de S. Paulo.

Das cartas
Uma biografia carteada. Paula Dip é jornalista, amiga muito próxima de Caio Fernando. Trabalharam juntos na Around, revista jovem e descolada bastante popular. Depois disso, cruzaram-se inúmeras vezes. Ela mesma confessa: quando estava sem emprego, Caio a convidava e vice-versa. A amizade, que começou na redação, num torpedinho timbrado com a logomarca da editora Abril atirado por um homem magricela e enigmático do outro lado da sala, cresceu. Virou febre. Tinham suas rusgas, porque, além de jovem, bonito, culto, Caio era difícil, ferino, instável, dramático em excesso. E Dip o admirava.

A correspondência entre ambos sempre foi volumosa. Depois da morte do “Ney Matogrosso da literatura brasileira”, como o próprio Caio gostava de se definir, passaram-se dez anos até que a jornalista pudesse reunir coragem suficiente para reler as missivas. E as releu. E em seguida colocou em prática o compromisso assumido por eles: quem restasse vivo escreveria a história do outro.

Por meio das dezenas de cartas trocadas, e também de depoimentos colhidos para o livro, Paula Dip reatou o compromisso. De modo ora difuso, ora perturbadoramente denso, a história de Caio F. é contada. Vêm à luz a infância em Santiago do Boqueirão, no extremo sul do Brasil, os anos de desbunde na Europa, os amores torcidos, a era de Aquário, a doença, as paixões, o jornalismo, a impressão que lhe causou uma jovem poeta carioca, jovem e deprimente, jovem, bela e deprimente: Ana Cristina César. Os dias passados na Casa do Sol, residência-castelo da escritora-bruxa Hilda Hilst, também estão lá, manuscritos.

Ali, Caio viveria um episódio curioso: a mudança do timbre da voz. Se antes o escritor tinha vergonha de falar, se se escondia nos cantos, se evitava conversas e passava por tímido ou pedante, era porque tinha vergonha da voz, fina, aguda, estridente. Um dia ele escreve à família: “Esta é uma carta só de boas notícias, portanto preparem-se. Em primeiro lugar MINHA VOZ MELHOROU! Foi uma mudança completa: estou com a voz muito bonita, grave, forte, perfeitamente normal...”. Bruxaria da velha Hilda? Estudioso da influência das órbitas de planetas e estrelas na vida das pessoas, para o escritor, a responsável pela mudança foi uma estrela cadente. Quando viu seu rastro, fez três pedidos: ganhar um prêmio de literatura, viajar à Europa e engrossar a voz. Em poucos dias, obteve as três graças.

Outro dado engraçado: a primeira carta em que Caio Fernando Abreu assina apenas Caio F., referência à dependente química alemã Christiane F., cujo relato se tornaria um dos livros mais vendidos na Europa naqueles anos perdidos de uma década perdida.

PARA SEMPRE TEU, CAIO F.
(Record, 495 páginas. R$ 59,90), de Paula Dip.

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