Franco Moretti organizou os cinco volumes, com colaboradores do porte de Vargas Llosa e Umberto Eco
*Antonio Gonçalves Filho, de O Estado de S. Paulo
Quando o professor italiano de literatura Franco Moretti começou a organizar o primeiro dos cinco volumes que compõem a coleção O Romance, cujo primeiro (A Cultura do Romance) está sendo lançado pela Cosac Naify (1.120 págs., tradução de Denise Bottman, R$ 130), sabia que contava para o monumental projeto com estudiosos não necessariamente alinhados com sua visão - a de que o modelo interpretativo de análise literária isolada de obras (o chamado ‘close reading’) está ultrapassado. Pluralista, Moretti defende um novo modelo analítico, transformando a crítica num verdadeiro laboratório, em que o cientista literário terá de dominar várias disciplinas - da antropologia à geografia, passando pela biologia - para evitar o vício canônico de um Harold Bloom. Sobre ele e sua coleção, cujos próximos volumes serão lançados um a cada semestre, Moretti, cujo sobrenome trai seu parentesco com o irmão cineasta Nanni Moretti (O Quarto do Filho), falou pelo telefone com o Estado, destacando a participação de dois dos seus colaboradores brasileiros, Roberto Schwarz e Luiz Costa Lima.
São nomes estelares numa constelação de críticos e escritores entre os 178 colaboradores de 99 instituições do mundo inteiro. A lista impressiona: fazem parte do comitê científico que supervisiona a coleção o peruano Mario Vargas Llosa, colaborador do Estado, e o crítico literário norte-americano Fredric Jameson. Entre os outros colaboradores, destacam-se o teórico e romancista italiano Umberto Eco, o poeta e ensaísta alemão Hans Magnus Enzensberger, o antropólogo inglês Jack Goody, o escritor italiano Claudio Magris e a crítica argentina Beatriz Sarlo. Talvez seja o suficiente para convencer o mais cético dos leitores sobre a proposta de fazer dessa uma obra de referência para a atual e as próximas gerações de estudiosos.
Originalmente publicada em italiano pela Einaudi, entre 2001 e 2003, a coleção teve uma versão reduzida (dois volumes) lançada na Inglaterra há três anos e foi saudada pelo crítico David Trotter, do London Review of Books, como um marco entre os estudos literários. Com justiça. O gênero romance é dissecado no "microscópio" de Moretti não só por especialistas em literatura como por antropólogos, sociólogos e filósofos. Num mundo globalizado, que ignora peculiaridades locais e em que cada vez mais fica difícil distinguir entre literatura francesa, angolana ou brasileira, Moretti propõe um seminário de crítica menos parecido com um simpósio da academia platônica e mais próximo de seu laboratório, em que bancos da dados críticos possam suprir as necessidades teóricas dos estudiosos.
Mudança na história literária
"No futuro teremos praticamente todos os textos literários online e as pessoas não saberão o que fazer com essa massa de informações, porque ter recursos disponíveis não significa nada", observa o italiano Franco Moretti, atualmente professor da Universidade de Stanford. "É preciso, mais que obter respostas interessantes, propor perguntas desafiadoras", diz. "É isso o que faz a crítica consequente", conclui o coordenador da coleção O Romance, que tem outros livros publicados no Brasil (entre eles o essencial A Literatura Vista de Longe, publicado pela Arquipélago Editorial).
De fato, qualquer internauta pode encontrar na rede um porto - mesmo inseguro - que assegure ser o primeiro romance moderno O Engenhoso Fidalgo D. Quixote de la Mancha, de Cervantes, ou garanta a James Joyce os direitos de criação do monólogo interior e do fluxo da consciência por conta de Ulisses. No entanto, é preciso um filósofo como o italiano Sergio Givone para mostrar como se dá a construção da interioridade no romance moderno, de Cervantes a Joyce - o que o autor de Hybris e Melancolia faz com mestria no primeiro volume de O Romance. É um dos grandes ensaios do livro. Nele, Givone se empenha em mostrar como o cavaleiro D. Quixote de Cervantes se assemelha ao marinheiro Robinson Crusoé de Defoe, cuja reclusão numa ilha ele compara à jornada do Wilhelm Meister de Goethe em busca do conhecimento do mundo. Não satisfeito, passa pela aventura espiritual da dupla Bouvard e Pécuchet de Flaubert para abordar a regressão à barbárie do Kurtz de Conrad e chegar às profundezas da consciência do Zeno criado por Svevo. Em todos eles, Givone, também um grande estudioso de Dostoievski, detecta uma atração pelo abismo, como se apenas um gigantesco desastre cósmico pudesse devolver a saúde ao planeta, livrando a Terra, como queria Zeno, "dos parasitas e das enfermidades".
Esse conflito entre destino e sujeito no romance moderno é destacado logo a seguir por Roberto Gilodi ao analisar o Anton Reiser de Karl Philipp Moritz. Como classificá-lo? Não é, evidentemente, um Bildungsroman, um romance de formação, mas, antes, um romance psicológico protofreudiano. O protagonista tem 7 anos quando começa a história (baseada em fatos reais) e chega aos 20, privado, portanto de "Bildung". Não amadureceu. É um romance tão bom como o Wilhelm Meister de Goethe, mas por que ficou esquecido ou lido, por equívoco, como um "documento secularizado de introspecção pietista"? Justamente pelo motivo que levou Moretti a conceber a coleção: pela ideia de cânone, de hierarquia, defendida por Harold Bloom. "Não encontro originalidade em Bloom e gostaria de observar que a história da literatura obedece a ciclos regulares, sendo preciso analisar as formas narrativas como a biologia evolutiva estuda a formação dos seres", justifica Moretti, propondo acabar com essa lista dos dez mais, como se a literatura fosse concurso de miss. "Não entendo como alguém pode investir energia nisso."
Moretti está mais interessado em preservar a tradição do romance numa época de fundamentalismo religioso e intolerância política. Lembra, a propósito, do ensaio O Romance sob Acusação, de Walter Siti, crítico e curador da obra completa de Pasolini para a Mondadori. Nesse texto, publicado já no primeiro volume, Siti mostra como os romances e os livros sagrados correm perigo "toda vez que predomina uma ideologia de guerra", citando a Inquisição, que identificava no "livre pensar" seu demônio ideológico. Não por outra razão, segundo Siti, o romance é o único "que tem necessidade de renegar-se a si mesmo" entre todos os gêneros literários, citando como exemplo o século 18 (quando o gênero se consolidou), "repleto de romances que negam sua natureza". Defoe, como Rousseau e Diderot, temendo que os leitores identificassem o romance como uma falsificação da realidade, chegaram a abjurar o gênero que os consagrou.
Desacreditado, ele atravessou séculos e sobreviveu a ataques de religiosos e autoridades civis (Vargas Llosa diz que as culturas religiosas produziram poesia e teatro, mas nunca grandes romances). E, se Moretti selecionou críticos de formação marxista para contribuir com sua coleção, o fez pensando justamente em oferecer uma visão histórica para a reabilitação do romance, que, hoje, corre o risco de declínio por excesso de autorreferência e falta de imaginação. "Não organizei a coleção por simpatia ideológica (Moretti é marxista e colabora com a New Left Review), mas por respeito a esses críticos." E é com a crença de que, análogo ao procedimento de Darwin, o romance possa ser analisado como um processo de seleção natural - em que Flaubert, Proust e Jane Austen teriam o mesmo DNA -, que Moretti preparou os outros quatro volumes da coleção, que vão discutir as formas literárias (volume 2), a história e a geografia do romance (volume 3), os temas e heróis (volume 4) e as lições do gênero (volume 5). A principal delas, segundo Moretti: "Hoje, quando o videogame toma o lugar do romance, mais do que nunca, é preciso ter espírito crítico."
domingo, 27 de setembro de 2009
'O Romance' reúne o mais ambicioso estudo sobre o gênero
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