sábado, 26 de setembro de 2009

Rosa na língua de Cervantes - Entrevista com a tradutora Florencia Garramuño


"Grande Sertão: Veredas", de João Guimarães Rosa, acaba de ganhar nova versão em espanhol. O livro, que já tinha sido publicado antes pela editora Seix Barral em 1967 em uma tradução feita pelo poeta e ensaísta Ángel Crespo, chega agora às livrarias em versão assinada por Florencia Garramuño e Gonzalo Aguilar e publicada pela Editorial Adriana Hudalgo.

Desnecessário dizer que traduzir Rosa não é tarefa das mais fáceis. O próprio escritor sabia das dificuldades em verter para outro idioma um texto em que prosa e poesia andam tão "misturadas". O Instituto de Estudos Brasileiros (IEB), da Universidade de São Paulo, conserva a extensa correspondência do autor de "Sagarana" com seus tradutores e que comprova a preocupação que o escritor mineiro tinha com a tradução de sua obra: em cerca de 372 cartas, escritas entre 1958 a 1967, ele esclarece para tradutores diversos - como Curt Meyer-Clason, Harriet de Onís, J. Jacques Villard, Angel Crespo e Pilar G. Bedate, Edoardo Bizarri, entre outros - dúvidas sobre seu texto. Dominando o alemão, inglês, francês, espanhol e italiano, em graus diversos, Rosa auxiliava no insano trabalho de traduzir seus livros.

E foi exatamente para entender um pouco sobre este trabalho que o Magazine conversou com Florencia Garramuño. Professora na Universidad de San Andrés, em Buenos Aires, ela é doutora pela Universidade de Princeton, concentrando seus estudos na literatura contemporânea do Brasil, Argentina e Uruguai. É autora de livros como "Genealogías Culturales. Argentina, Brasil y Uruguay en la Novela Contemporánea" (1980-1990) e colaboradora constante de publicações acadêmicas em diversos países.

Confira a seguir a entrevista.

Como você tomou contato com a obra de Guimarães Rosa? E com "Grande Sertão: Veredas"? Guimarães Rosa é um escritor conhecido na Argentina. Ele era um escritor estudado nos cursos de literatura latino-americana da faculdade de letras da Universidade de Buenos Aires, onde eu me formei, sobretudo os contos. Mas o meu conhecimento maior sobre "Grande Sertão: Veredas" veio na Princeton University, onde fiz o meu doutoramento em literatura latino-americana e onde pude consultar muita da bibliografia crítica existente sobre Rosa e o romance. Quando, por outro lado, fiz a tradução de "Vidas Secas", de Graciliano Ramos, e posteriormente a edição em espanhol de "Os Sertões", de Euclides da Cunha, o sertão de Rosa estava muito presente como uma das outras elaborações imaginárias do sertão na literatura brasileira.

Rosa "misturou" prosa e poesia de uma maneira impressionante. E "Grande Sertão: Veredas" é o momento máximo dessa "mistura". Como falante e leitor do português fico curioso de pensar como é possível traduzir Rosa para outra língua. Nele, o som e o sentido andam juntos. Ele escreve poesia em prosa. Pergunto: sua tradução teve esta preocupação com o som? Precisamente uma das coisas que tivemos muito presente, e tentamos reproduzir na tradução, foi a musicalidade do texto. Achamos que essa musicalidade não é só importante na construção do sentido do romance, mas que também produz um efeito de embalo do leitor que o leva a continuar a leitura do texto; ainda quando o texto às vezes se torne difícil, essa musicalidade conduz o leitor pelas veredas do texto.

Qual a tiragem desta nova tradução? Rosa é lido por um público muito restrito? A tiragem inicial foi de 3.000 exemplares. Eu não diria que Rosa é lido por um público muito restrito na Argentina. Claramente, não se trata de um escritor muito popular, mas na Argentina ele tem sido bastante lido por escritores e por estudiosos da literatura e da cultura brasileira. No entanto, é verdade que "Grande Sertão..." não tem sido lido muito, não só na Argentina, mas no resto da América Latina também. Isso é o que essa tradução busca corrigir.

Na Argentina, algum escritor brasileiro é realmente lido? Acho que o leitor argentino é um leitor interessado na literatura brasileira. É verdade que muitos não são lidos, mas acho que não é por causa de desinteresse, e sim por falta de disponibilidade de boas traduções, livros nas livrarias e uma difusão através das instituições da cultura, feiras do livro, universidades, escolas mais importantes. Hoje, na Argentina, existem, vários escritores brasileiros disponíveis nas livrarias: Milton Hatoum, João Gilberto Noll, Guimarães Rosa, Machado de Assis, Silviano Santiago, Graciliano Ramos, Bernardo Carvalho. E acho que são lidos, sim. A editorial Corregidor tem uma coleção especial de literatura brasileira, a Vereda Brasil, que Gonzalo, eu e Maria Antonieta Pereira dirigimos, e nessa coleção, por exemplo, a Antologia de contos brasileiros teve bastante sucesso.

Na década de 60, Ángel Crespo fez uma comemorada tradução do livro. O que pensa dessa tradução? Acho que foi uma ótima tradução, com um grande sentido da experimentação linguística. Na época, no entanto, a fortuna crítica sobre o “Grande Sertão: Veredas” e os conhecimentos sobre a língua de Guimarães Rosa não eram os que são hoje. E, aliás, o momento estético, no contexto das segundas vanguardas, especialmente na América Hispânica, era um contexto muito propenso às experimentações da linguagem. O certo é que, no caso de Rosa, essas experimentações e neologismos vão também da mão de um ouvido muito atento às invenções da linguagem popular numa área regional específica, o que faz com que os neologismos não entorpeçam a leitura, mas muito pelo contrário, tenham um sentido popular e “regionalista” – sem ser o regionalismo de 30, claro– que se combina com essa intenção experimental. Crespo optou por uma invenção de palavras e distorção de frases muito maior do que aparece no romance original, e isso faz com que o texto se torne muito mais difícil em espanhol do que em português ou, pelo menos, mais entrecortado, atrapalhando – a nosso ver, claro – o seu ritmo e musicalidade. Nós optamos por reproduzir a fluidez do texto rosiano, extremando as capacidades do castelhano para expandir as suas próprias possibilidades, criando, dentro dele, como se faz em muitas regiões rurais da América Latina, neologismos que, no entanto, conservam as regras de formação do castelhano.

Você poderia dar um exemplo? Satanasim (Satanás pequenino) foi traduzido por nós por satanasin: a palavra não existe em espanhol – como também não existe em português –, mas tem outro tipo de diminutivos que são formados no espanhol pelo sufixo in, por exemplo, calabacín. Nós tivemos a vantagem de nos beneficiar de uma grande quantidade de trabalhos críticos que especificaram os usos da língua em Guimarães, assim como a sua colocação dentro da tradição brasileira, e isso, claro, foi muito importante na interpretação que nós fizemos do livro para poder traduzi-lo. É claro, por um outro lado, que na tradição brasileira o peso do regionalismo em tantos momentos do modernismo faz com que possam conviver em Guimarães regionalismo e experimentalismo de uma forma que, para as tradições hispano-americanas, teria sido muito difícil nos anos 60. Rosa, afortunadamente, não é nem foi nunca um escritor do realismo mágico.

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