quarta-feira, 21 de outubro de 2009

Conto Brasileiro: Idílio (Dalton Trevisan)

Idílio

Dobrando a esquina, na primeira sombra de árvore os dois se beijavam. Cecília tinha a ponta dos cabelos ainda molhados. Enfermeira, lidava no hospital até às seis horas. Banho de chuveiro, jantava e corria ao seu encontro. Às vezes trescalava a toalha úmida. Paulo a beijava com tanta aflição, por pouco engoliu o brinco de pérola falsa. Na rua até às dez horas, fechado o portão.
Ruazinha escura, encostados ao muro, beijavam-se. Ele a ensinou: boca pequena e
dócil, a descerrar os dentes, a titilar a língua. Um dentinho saliente e, se o beijo de muito amor, saía gota de sangue.
De uma a outra sombra (qual o nome daquela árvore tão negra?), em cada uma se
beijavam. Não se davam as mãos entre duas árvores, nunca ela lhe pegou no braço. Sem rumo, cruzavam apressados as ruas iluminadas.
Viam-se uma vez por semana, dia de folga do hospital. Em sandálias o dia inteiro, assistia os doentes e, das sete às dez da noite, acompanhava-o de salto alto. O moço esperava na esquina: ligeira, apesar de gorda, nos últimos passos corria ofegante.
Quando chovia, ela fechava a sombrinha, conchegados sob o guarda-chuva de Paulo. Rodavam entre as sombras, sem poder encostar-se às paredes. Mal seguro, o guarda-chuva os descobria a cada beijo.
Encontros noturnos e, seis meses depois, ao vê-la uma tarde na rua, achou-a mais velha e mais gorda. Espantou-se dos dedos lidos, não tomava sol, fechada no hospital. No branco rosto leve mancha de buço. De noite, à sombra da árvore, voltou a ser querida, no dentinho um vespeiro de beijos trabalhava o mel.
Bastante perigo nas ruas. Acendia-se a janela, uma bruxa de papelotes bradava se não tinham vergonha. Velho, não acendia a luz, espiando bem quieto. Os nichos ao longo dos muros disputados por outros casais. Hora do cinema, passava gente.
No meio do quarteirão, cada um vigiando uma das esquinas. Passos ao longe,
separavam-se. Ela arrumava os cabelos. Paulo enfiava a mão no bolso. Os outros chegavam-se devagar, olhando muito. Cecilia baixava o rosto. Ele falava — a única vez que falava.
Ah, e os faróis dos carros? Então escondia-lhe o rosto na sombra. Algum espião surgia na esquina, obrigados a sair para outra rua. Impossíveis os bancos de praça, por causa dos vagabundos; além do mais, os malditos guardiões.
O assunto, quando passava alguém, era o céu. "Esta noite não tem estrela" — dizia a moça. Ele olhava o céu aceso de janelas. Assim descobriu a miopia de Cecília. Para ela no céu não mais que a lua.
Certas noites erravam mais de uma hora até o primeiro beijo. Contra o muro a agarrava com tal fúria, que ela gemia e, ao separarem-se, tinha de segurá-la pelo braço, bem tonta. Podia beijar-lhe a boca, o nariz, os olhos, menos a orelha, cócega demais.
Passaram-se meses, um ano quem sabe. Paulo começou a brigar com ela, só dizia não. Cecília chorava e, ao esquecer o lenço, ele não emprestava o seu: devia enxugar as lágrimas na manga do casaquinho. Mais de uma noite inteira sem tocá-la, os dois marchando sem descanso debaixo das árvores.
Aconteceu uma noite.
— Agora tem de casar. Você tem de.
Primeira vez a mão pesou no braço.
— Por favor. Depressa não posso.
— Está melhor?
— Puxa, foi uma dor...
Paulo reparou nas duas sombras. Uma, albatroz selvagem da noite, abrindo asas na glória de arremeter vôo. A outra, gorda e grávida, um bule de chá.

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