quarta-feira, 21 de outubro de 2009

Diário de Anne Frank foi reescrito para "parecer natural", diz estudo



da Folha Ilustrada

A cena toda dura 20 segundos, dos quais apenas sete mostram a menina na janela do número 37 da rua Merwedeplein, em Amsterdã, em 1941, espiando os vizinhos que estavam prestes a se casar. São as únicas imagens em movimento de Anne Frank, um ano antes de ela passar a viver escondida dos nazistas, na Segunda Guerra.

O vídeo está disponível há alguns dias no canal www.youtube.com/annefrank, criado para celebrar os 80 anos que Anne teria hoje se não houvesse morrido em um campo de concentração, em 1945, aos 15.

A efeméride coincidiu com o lançamento do livro "Anne Frank: The Book, the Life, the Afterlife", da escritora americana Francine Prose. A obra lança um novo olhar sobre "O Diário de Anne Frank", texto que a garota escreveu e reescreveu dos 12 aos 15 anos, enquanto viveu com a família e outros judeus nos fundos do prédio em que o pai trabalhava.

O estudo de Prose busca mostrar que as anotações, publicadas pela primeira vez em 1947, após serem consideradas "entediantes" e rejeitadas por editoras, vão além do papel de registro histórico que lhes é concedido. Elas são, diz Prose, de Nova York, por telefone, à Folha, "uma obra de literatura bem trabalhada, com um controle para parecer natural".

A ideia de Prose, crítica literária e presidente da associação de escritores PEN American Center, é que os anos de confinamento fizeram Anne amadurecer como leitora e escritora e, com isso, ganhar "competência técnica, qualidade de romancista e habilidade de transformar pessoas vivas em personagens".

"Foram três anos em que ela não fez quase nada a não ser ler e escrever. Ela devorava romances para garotas, mas também lia Goethe, Shakespeare, [Friedrich] Schiller. Ganhou com isso uma técnica que não podia ter aos 12 anos, quando começou suas anotações."

Sabe-se que Anne reescreveu parte considerável de suas memórias a partir de 1944, após ter ouvido no rádio um membro do governo holandês dizer que diários feitos no período teriam interesse histórico.

De maio até agosto daquele ano, quando oficiais da SS descobriram o esconderijo da família Frank, ela refez uma média de quatro páginas por dia. O livro nunca chegou a sair como Anne imaginou --foi editado, depois que ela morreu, pelo pai, que usou tanto trechos originais quanto os reescritos.

Em 1989, foi publicada a chamada "The Critical Edition", de mais de 700 páginas, com todos os trechos do diário original (destacados no volume como "versão a"), todos os trechos reescritos em páginas soltas (a "versão b") e a edição feita pelo pai, Otto Frank, em 1947 (a chamada "versão c", que é "O Diário de Anne Frank" como ele ficou conhecido).

Sexualidade

A edição de 1989 inclui trechos que Anne havia decidido omitir, como os que tratavam de sua sexualidade. E outros que Otto preferiu deixar de fora, com passagens pouco elogiosas sobre sua mulher e outros moradores do esconderijo.

Em 1995, a chamada "Edição Definitiva" (publicada pela Record em 2003), pegou algo das duas versões e trouxe os diários com 30% mais páginas do que eles tinham em 1947.

Foi a edição de 1989 que Prose usou como base de seu estudo. "Ao comparar os textos originais e os refeitos, vê-se com clareza como ela adicionou informações, rearranjou frases, esclareceu situações."

Prose cita como exemplo o dia em que, em julho de 1942, uma notificação dos nazistas chegou à casa de Otto Frank, pouco antes de eles irem para o esconderijo. "Se você lê a versão original, é pouco clara, porque a própria Anne estava confusa. Ela não entendia direito o que estava acontecendo, era uma menina pequena."

Na segunda versão sobre aquele momento, que é a conhecida, Anne descreve:
"-Papai recebeu uma notificação da SS -sussurrou ela [Margot].- Mamãe foi ver o sr. Van Daan.
Fiquei pasma. Uma notificação: todos sabem o que isso significa. Visões de campos de concentração e celas solitárias passaram por minha mente. Como poderíamos deixar papai ir para um destino assim?
-Claro que ele não vai- declarou Margot."

Ali, diz Prose, Anne "já tinha a técnica, a habilidade de intercalar momentos de reflexão com cenas dramatizadas. É algo incomum para um diário de uma menina de 15 anos".

A autora destaca também, entre as qualidades de Anne Frank, "um poder de observação, um olho para o detalhe, um ouvido para o diálogo, a capacidade de falar sobre um momento específico e sobre pessoas específicas e parecer universal".

Prose diz que, com poucas exceções, "o diário de Anne nunca foi levado a sério como literatura". Lembra a explicação dada por Harold Bloom: "O diário de uma criança, mesmo que ela tenha sido uma escritora tão natural, dificilmente poderia sustentar uma crítica literária. Não se pode escrever sobre "O Diário de Anne Frank" como se Shakespeare, ou Philip Roth, fosse o objeto".

É curioso que o próprio Roth esteja entre os admiradores declarados de Anne Frank. "Ela era algo para alguém de 13. É como assistir a um filme acelerado de um feto ganhando um rosto", ele escreve em "O Diário de uma Ilusão" (1979).

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