quarta-feira, 10 de junho de 2009

Artigo: O que aconteceu depois do último capítulo


Gincana literária prova que escrever a continuação de clássicos ou de best-sellers continua irresistível

Por Sérgio Augusto, do jornal O Estado de São Paulo

No início da semana, os advogados do escritor J.D. Salinger entraram com uma ação contra John David California, acusando-o de infringir os direitos autorais de The Catcher in the Rye (O Apanhador no Campo de Centeio). Há coisa de um mês, J.D. California lançou seu primeiro romance, 60 Years Later Coming Through the Rye, uma continuação não muito velada do célebre livro de Salinger, imaginando o que teria acontecido ao seu adolescente herói, Holden Caulfield, se ele tivesse logrado chegar à terceira idade.

Dar asas à imaginação a partir de clássicos da literatura ou de meros best-sellers, especulando sobre o destino de seus protagonistas depois do último capítulo, do ponto final, é passatempo antigo, que ameaçou virar moda no mercado editorial no começo da década passada. Scarlett, continuação (em inglês, sequel) de ...E o Vento Levou, escrita por Alexandra Ripley, vendeu 2 milhões de exemplares em 1991. Em seu rastro vieram, nos meses seguintes, Mister Grey (com as aventuras posteriores de Huckleberry Finn); H: The Story of Heathcliff?s Journey Back to Wuthering Hights (sobre a volta de Heathcliff ao Morro dos Ventos Uivantes); Lara?s Child (sobre a vida do filho que Lara Antipova teve com o doutor Iuri Jivago). Em 1993, a onda das sequels chegou ao fim.

Ela ainda estava em alta quando a revista Harper?s atraiu meia dúzia de escritores para o desafio de desenvolver um pequeno relato prospectivo com personagens de alguns marcos da ficção. A dramaturga Wendy Wasserstein escreveu Franny at Fifty (ou seja, Franny Glass, a salingeriana heroína de Franny & Zooey, aos 50 anos); Jane Smiley foi de Kafka (Gregor: My Life as a Bug, diário de Gregorio Samsa enquanto inseto); Jay Parini fantasiou sobre o triste fim do fitzgeraldiano Jay Gatsby (The Late Gatsby); e Paul West levou adiante, em Tadzio?s Farewell, os devaneios de Gustave von Aschenbach, o escritor gay de Morte em Veneza, de Thomas Mann.

No mesmo período, quatro parodistas da revista de humor National Lampoon - Henry Beard, Christopher Cerf, Sarah Durkee e Sean Kelly - criaram a Sociedade Americana da Continuação (The American Sequel Society) e publicaram um livro, The Book of Sequels, inteiramente dedicado à arte de levar adiante o passado congelado em romances e filmes. Na capa, o casal de ...E o Vento Levou, Rhett Butler e Scarlett O?Hara. Só que, em vez de "Francamente, querida, estou pouco me lixando", Rhett diz para Scarlett: "Pensando bem, eu me importo com você, sim!" (ou que melhor tradução vocês tenham para "On second thought, I do give a damn!").

Entre as melhores sacadas, o épico de Gabriel García Márquez, Cem Anos de Solidão, que virou Solidão: Os Cem Anos Seguintes (ao longo dos quais, Macondo é arrasada por um furacão e anexada ao Panamá); a alegoria de George Orwell, A Revolução dos Bichos, com legumes no lugar dos cães e porcos, daí o título: Vegetal Farm; o livro de cabeceira das misses brasileiras, O Pequeno Príncipe, com o príncipe avançado nos anos, além de gordo e careca; o controvertido A Princesa, versão feminina de O Príncipe, de Maquiavel; Assim Pilheriou Zaratustra; Moby Dick 2: O Resgate do Pequod!; e o Gênese da Bíblia, cujo subtítulo é um achado: E no oitavo dia, Deus acordou.

A brincadeira, de certo modo borgesiana, diga-se, só tem graça se se conhece, ainda que de orelhada, a obra original.

Sábado passado, quase ao final da BookExpo America, a convenção anual das editoras americanas, uma prodigiosa impressora de livros por encomenda, chamada Espresso Book Machine, desovou, em poucos minutos, pilhas e mais pilhas de um volume encadernado de 134 páginas, intitulado Book: The Sequel. Chegava ao fim, com lombada e tudo, a gincana literária iniciada, dois dias antes, pela editora Perseus, que, através de seu site, estimulara os internautas a bolarem continuações para livros de sua escolha. Únicas exigências: um título inédito e uma frase de abertura original.

Baratas que acordam de manhã transformadas em seres humanos (mais precisamente em "homens neuróticos, banais e ambiciosos do Leste Europeu") - assim começaria, pelo gosto de um internauta, a continuação de A Metamorfose, de Franz Kafka, que ganhou o título de Metamorfose 2: Desta Vez é Pessoal. "A gente nem pode mais tirar uma soneca?" seria a frase de abertura de No Sétimo Dia, a continuação do Gênese. A de O Capital 2, de Karl Marx? "Como vocês devem ter notado, eu estava certo." E a de Mein Wahnsinn (Minha Loucura), desdobramento de Mein Kampf (Minha Luta), de Adolf Hitler: "Eu devia estar doido."

Moby Dick (de Herman Melville) e Memórias do Subterrâneo (de Dostoievski) mereceram o maior número de sequels. Mais próxima do original, Moby Dunk abre com esta confissão: "Eu ainda me chamo Ishmael." Na outra continuação, Moby Dick 2, Ishmael, o narrador, se estende por quase duas dezenas de palavras: "Me chame de Tolo, mas eu não podia imaginar que fossem proibir a pesca de baleias nem que eu acabaria como garoto-propaganda do Partido Republicano." Uma das continuações de Memórias do Subterrâneo também é concisa: "Esqueçam o resto. Era só o fígado mesmo." A outra também é boa: "Não sou, afinal de contas, um homem doente e nada há de errado com o meu fígado; sofro mesmo é de depressão, que meu médico controla à base de medicamentos."

PARA QUEM CONHECE

Se nem de referência você conhece o conteúdo de Anna Karenina (Leon Tolstoi), O Retrato de Dorian Gray (Oscar Wilde), Esperando Godot (Samuel Beckett), Madame Bovary (Gustave Flaubert), Os Sete Pilares da Sabedoria (de T.E. Lawrence), Rebeca (Daphne du Maurier), Animal Farm (aqui, A Revolução dos Bichos) e To Kill a Mockingbird (O Sol É Para Todos, de Harper Lee), melhor pular o próximo parágrafo. Se conhece todos eles, divirta-se:

"Todas as fast-foods se parecem entre si; as refeições normais são saudáveis - cada uma à sua maneira." (Anna McKarenina)

"Toda arte é inútil, pensei enquanto retocava outra vez as rugas do meu rosto e ao redor dos meus olhos." (O Photoshopping de Dorian Gray)

"Vladimir: ?Ei-lo, finalmente! Já era tempo, né??" (Encontrando Godot)

"?Isto é bem mais excitante que escrever cartas?, pensou Emma, enquanto lia os documento secretos do amante, que encontrara na carruagem." (Madame Bovary: Espiã)

"Eu sempre achei uma chatice andar de motocicleta com capacete." (Os Oito Pilares da Sabedoria)

"Ontem à noite, tomei um Stilnox e dormi à beça, sem sonhar com Manderley." (Depois do Incêndio)

"Todos os animais são iguais, exceto aqueles com gripe suína." (Mexican Animal Farm)

"Misture numa coqueteleira 3 partes de tequila, uma de suco de toranja, e uma de licor Triple Sec." (Tequila Mockingbird)

LITERATURA BRASILEIRA

Para suprir a ausência da literatura brasileira em Book: The Sequel, aventurei-me a imaginar como poderiam começar as continuações de Dom Casmurro, Grande Sertão: Veredas e Vidas Secas. Confiram e avaliem:

"Jamais hesitei se devia abrir estas memórias pelo princípio ou pelo fim. Afinal, meu fim é do conhecimento de todos, mas o princípio de minha vida póstuma, não. Logo depois que expirei, Bentinho encontrou finalmente uma mulher sem olhos de ressaca ou de cigana oblíqua e dissimulada, até porque era cega. Seu nome, Helen Keller." (Memórias Póstumas de Capitu, de Machado de Assis)

"Abrenúncio! Tiros que o senhor ouviu foram das armas do coronel Carlos Vereza e seus filhos, compadre meu Quelemém. Esses gerais, tudim deles. De medo morro dos Verezas. Mas não me assente o senhor por poltrão." (Grande Sertão: Verezas, de Guimarães Rosa)

"Na larga avenida os infelizes tinham caminhado o dia inteiro, estavam cansados e famintos. Fazia semanas que Fabiano, sinhá Vitória e os dois meninos vagavam pela cidade grande, atrás de pouso e comida." (Cimento Armado, de Graciliano Ramos)

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