segunda-feira, 29 de junho de 2009

Cristovão Tezza defende uso de experiência pessoal em ficção


da Folha Online

Cristovão Tezza (foto) participa da Flip nesta sexta-feira (3) para falar sobre o uso de sua própria experiência em "O Filho Eterno"
Muitos escritores utilizam suas experiências pessoais como base para a produção de obras de ficção. Mas será que se inspirar em histórias próprias contribui ou prejudica o processo inventivo?

Para falar sobre esse assunto, a Flip (Festa Literária Internacional de Paraty) convidou Mario Bellatin (professor de uma escola de escritores no México), que critica o uso desses elementos pessoais, e Cristovão Tezza (escritor brasileiro mais premiado de 2008), que partiu de sua convivência com o filho para produzir "O Filho Eterno" (Record, 2007). O encontro acontece nesta sexta-feira (3), na mesa 9 do evento.

Premiado com o Portugal Telecom, Bravo! e com o Jabuti 2008, o romance "O Filho Eterno" mostra as inúmeras dificuldades e as constantes e pequenas vitórias de se criar um filho com síndrome de Down. Ao falar sobre o tema, Tezza mostra curiosidades e superações que precisou enfrentar durante sua trajetória pessoal e profissional.

Leia um trecho de "O Filho Eterno", que mostra a aflição e o medo do pai ao perceber que seu filho, com síndrome de Down, havia desaparecido de casa:

*
"Só descobriu a dependência que sentia pelo filho no dia em que Felipe desapareceu pela primeira vez. É, talvez, ele refletirá logo depois, ainda em pânico, dando corda à sua rara vocação dramática, que agora lhe toma por inteiro, a pior sensação imaginável na vida - quase a mesma sensação terrível do momento em que o filho se revelou ao mundo, da qual ele jamais se recuperará completamente, repete-se agora ao espelho, com intensidade semelhante, mas não se trata mais do acaso. Desta vez, ele não tem álibi: o filho está em suas mãos. E há que preencher aquele vazio que aumenta segundo a segundo, com alguma coisa, qualquer coisa - mas estamos despreparados para o vazio. O sentimento de desespero nunca é súbito, não é um desabamento - é o fim de uma escalada mental que vai queimando todos os cartuchos da razão até, aparentemente, não sobrar nenhum, e então a idéia de solidão deixa de ter o charme confortável de uma idéia e ocupa inteira a nossa alma, em que não caberá mais nada, exceto, quem sabe, a coisa-em-si que ele parece procurar tanto: o sentimento de abismo. (Não se mova, que dói.)

Esse é o retrospecto desenhado com calma, quase vinte anos depois. No momento, tudo é de uma banalidade absurda, em que a partir de um primeiro olhar mecânico de procura - cadê o menino? -, que logo se perde em outros afazeres, até voltar ao ponto - ele estava aqui, vendo televisão -, e o apartamento não é tão grande assim para uma criança se esconder, o que ele nunca fez, aliás. Na televisão ligada, que conferiu como um Sherlock buscando pistas (e as pistas estavam ali, mas ele não soube perceber), os estranhos heróis japoneses desenhados naquele traço primário e agressivo que o pai (criado por Walt Disney) detesta mas o filho ama numa paixão absurda; de tal modo que, trissômico, é capaz de compreender toda aquela complexa hierarquia mitológica de seres (que se desdobram em álbuns, revistas, figurinhas, bonecos, fitas de vídeo, sorteios, camisetas, discos, livros de desenho), repetir os seus nomes (que o pai não entende - os nomes dos personagens já são esquisitos e além disso a linguagem continua dolorosamente atrasada no desenvolvimento do filho), gritar os seus gritos de guerra e representar interminavelmente sobre o sofá da sala o teatro daquela teogonia universal, com bonequinhos coloridos que falam, movem-se, lutam, vivem e morrem horas e horas e horas a fio nos dedos do filho, debaixo de uma sonoplastia incompreensível - a voz do filho reproduz bombas, explosões, discussões (mudando de tom a cada mudança de personagem), ordens de comando, respostas imediatas, lutas medonhas e mortes terríveis.

Tudo incompreensível. Só a irmã, parece, entende o que ele diz, cuidando das coisas dela, mas com o ouvido atento - e freqüentemente promove ela mesma outro teatro, como atriz e diretora de cena, reproduzindo sem saber a vida que leva, teatro e vida são a mesma coisa, e de certo modo trazendo à realidade o irmão que, dócil, sempre aceita de bom grado os papéis que tem de assumir, que são sempre o dele mesmo, incrivelmente paciente com a impaciência eventual da irmã. "Você fique aqui! Irmão, não saia daí! Eu sou tua mãe! Isso, bem assim! Muito bem!" Como o pai nunca fala a ninguém do problema do filho, ela também, ao entrar na escola, não comentará jamais com ninguém a esquisitice do irmão - anos depois, a professora relembrará esse silêncio estratégico, que fielmente reproduzia o silêncio paterno.

Como se a educação fosse um processo inconsciente - o mais importante corre na sombra, antes na didática dos gestos, da omissão e da aura que nos discursos edificantes, lógicos e diretos. A porta aberta, ele percebe - saiu de casa e deixou uma fresta de pista. Com certeza pegou o elevador para descer os dezenove andares, o que ele sabe fazer. Não, o porteiro não viu, o que não quer dizer muito - bastaria uma breve descida de dois minutos até o estacionamento, uma ida e volta, e o menino passaria por ali sem ser notado. O prédio, sinal dos tempos, ainda não tinha as grades altas com pontas agudas e as câmeras de segurança e os fios elétricos desencapados que pouco depois fechariam aquele pátio generoso e inteiro aberto, quinze metros da portaria à calçada, onde o pai se postou, pateta, olhando para um lado e para o outro, o mundo inteiro diante dele.

Escolheu o caminho mais conhecido, em direção ao centro. Ele deve ter ido por aqui. Pequenas esperanças vão se formando lado a lado com grandes terrores. Virando a esquina, quem sabe ele esteja ali? É preciso perguntar às pessoas, mas ele sente uma inibição absurda, uma espécie de vergonha, por ele e pelo filho, que lhe trava os gestos - ou a simples vergonha masculina de perguntar, como nas piadas homens versus mulheres. O homem nunca pergunta, e ele parece corresponder ao próprio lugar-comum. Cretino topográfico, o pai é capaz de rodar dez vezes perdido num bairro antes de perguntar a alguém onde fica a rua que procura.

Mas agora não é uma rua, é um filho. Teria de achar a palavra certa para explicar, as pessoas não sabem - talvez dizer "você viu meu filho? Ele é um menino com problema", ou "ele é meio bobo"; ou, ele é "deficiente mental", e tudo aquilo não corresponde nem ao filho nem ao que ele quer dizer para definir seu filho; ele é uma criança carinhosa mas meio tontinho, talvez assim ficasse melhor; não pode dizer "mongolóide", que dói, nem "síndrome de Down" - naquela década de 1980, ninguém sabe o que é isso."


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"O Filho Eterno"
Autor: Cristovão Tezza
Editora: Record
Páginas: 224
Quanto: R$ 34 (Na livraria da Folha)

Um comentário:

  1. Acabei de ler "O Filho Eterno", num fôlego só. Sei que não é adequada essa leitura para uma análise mais cuidadosa, mas a primeira vista percebo uma criação sensível e intimista sobre os conflitos do homem, mascarados pelas ambições e desejos construídos na sociedade onde se fez sujeito. E quando chega aquela hora, a "desgraça" ou "tragédia", que sacode ou tira-o da rota. Então tudo muda. Nada é mais cômodo. Pode ser que o texto seja uma autobiografia e receba críticas negativas afastando-o dos textos literários, da magia metafórica das palavras encantadas. No entanto, há encantamento e fantasia no texto de Tezza, que procura produzir um mundo aparte que dialoga com sua realidade tentando reconstruir sentidos perdidos e exaltando vitórias conquistadas. É como Camões narrando a bravata portuguesa em "Os Lusíadas"

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