TERESA CHAVES
Colaboração para a Folha Online
Quando, depois de adultos, revisitamos um lugar que foi importante para nós na infância, é comum a sensação de estranhamento. O lugar parece que encolheu, ou fomos nós que crescemos? Detalhes que eram vívidos, como um telhado azul ou um muro que brotava de forma abrupta em um jardim, na verdade nunca existiram. Mas nossas memórias desse lugar permanecem, mesmo quando descobrimos quão diferente ele é daquilo que mostra a nossa imaginação.
Ora, se o lugar é tão diferente, será que as memórias que temos pertencem a ele de fato? Podemos nos reapropriar de lembranças de eventos que nunca aconteceram? Essas perguntas que nos angustiam pelo menos algumas vezes na vida são a matéria-prima para a criação literária do escritor amazonense Milton Hatoum, 57. Se os eventos ocorreram ou não, pouco importa: a memória, vista pela distância, é a base da imaginação.
Primeiro livro de contos do ficcionista amazonense Milton Hatoum
Nascido em Manaus em 1952, desde sempre ele conviveu com a mistura entre nacional e estrangeiro. Descendente de uma família de libaneses e habitante, até os 15 anos, de uma cidade portuária, Hatoum passou a infância e a adolescência cercado por elementos que o senso comum considera exóticos e que para ele são absolutamente familiares. Seu pai veio do distante Líbano para conhecer aqui uma brasileira, também de família libanesa, e começar com ela uma vida no Amazonas.
Foi a mãe de Hatoum a principal responsável pela identidade dele com o Brasil: numa terra onde a noção de fronteira é muito tênue, convivendo desde cedo com o árabe, o português e o espanhol falados no cotidiano, teria sido fácil perder-se na aventura de uma identidade plural e difusa. Mas a insistência materna para que ele falasse português, e não árabe, foi crucial para que a língua estivesse diretamente atrelada à noção de pátria. Pátria esta que é associada, para o escritor, não só a língua, mas também à paisagem da infância.
Se a primeira encontrou fronteiras reais, a segunda se desenrola em linhas imaginárias. Hatoum descreve a Amazônia como um mosaico de grandes nações e de tribos dispersas.
Entre essas tribos encontra-se a que deu origem à sua família, uma pequena comunidade de orientais que migrou, em primeiro lugar, para o Acre --quando este ainda não era terra brasileira. Ao pesquisar sobre a Revolução Acriana (1899-1803), o escritor descobriu a presença de libaneses no Exército brasileiro, o que mostra a participação intensa que essa comunidade teve na região. Aos poucos, além de povoarem o norte do Brasil, os descendentes de sírios, turcos, libaneses povoaram também a ficção de Hatoum, que tanta raiz encontrou nas origens do escritor.
Se Manaus está enraizada nele, também o está a movimentação imigrante de sua família. Itinerante, em 1967 ele partiu de Manaus para viver em Brasília, onde concluiu os estudos. Em 1970 mudou-se para São Paulo, para cursar arquitetura na FAU - USP (Faculdade de Arquitetura e Urbanismo da Universidade de São Paulo). Os anos passados como estudante não lhe renderam a profissão de arquiteto, mas sim um pequeno livro de poesias que foi sua
primeira publicação, feito com amigos paulistas e cariocas. "Amazonas: um rio entre ruínas" também foi responsável pelos primeiros dilemas de Hatoum quanto à vida de escritor.
Quando decidiu largar a arquitetura para escrever, a oposição feroz de sua família não teve ecos em sua mãe. Foi ela, novamente, a responsável por guiá-lo. O livro foi lançado em Manaus e, para surpresa do autor, começou a ser vendido cotidianamente, dois ou três exemplares por dia. Vendas a uma cliente única: era a mãe, que os comprava para distribuir para as amigas e incentivá-lo, fazendo-o achar que tinha leitores. De uma forma ou de outra esse pequeno engodo surtiu efeito, e ele partiu para a Espanha com uma bolsa de estudos. Em 1980, morou em Madri e em Barcelona; um ano depois, foi morar em Paris, onde estudou literatura na Universidade de Paris-3º.
Foi justamente essa distância, esse passo maior para fora de casa que definiu a carreira tardia de Hatoum como escritor. Ele, que só havia feito poemas e contos, imitações dos autores que apreciava, se descobriu com material suficiente para um romance, um olhar de longe para sua casa, para onde pretendia voltar. Com saudades dos cheiros e das línguas de Manaus, em 1982 começou a escrever "Relato de um Certo Oriente" (Cia. das Letras, 1990), ainda em Paris. Continuou a escrevê-lo quando voltou para Manaus, para só terminá-lo em 1987. Como começou a dar aulas logo após a volta, só conseguia escrever antes ou depois do turno letivo.
Foram muitas madrugadas, da 22h às 3h, passadas em um quartinho sórdido e abafado, alugado às pressas depois da volta de uma fresca Paris. Inspiração e um suor que pingava repetidamente no papel, pois escrevia a mão, para depois datilografar tudo no final. Isso explica, em parte, a demora na conclusão do livro. Mas só em parte, pois Hatoum é, e sempre foi, um escritor avesso à pressa, que prefere trabalhar devagar.
Talvez por isso, por ignorar essa urgência do tempo, é que não se incomoda nem um pouco por ter lançado seu primeiro livro tardiamente, com quase 40 anos. Na verdade, isso é algo que aprecia, contrário que é a publicações quando se é jovem demais. Para ele poucos jovens produzem de fato algo muito bom muito cedo, e publicações antecipadas podem terminar por prejudicar um trabalho que, mais maduro, seria mais consistente. Não se deve apressar a literatura.
Na verdade, não se deve apressar nada. Seu livro seguinte, "Dois Irmãos", foi publicado 11 anos depois. A lentidão, diz ele, é uma de suas heranças amazônicas, e uma das mais importantes. É ela que lhe permite distanciar-se dos eventos que serão narrados, que possibilita a maturação da memória. Ela é, afinal, a principal fonte da imaginação. Para Hatoum, as duas não diferem muito, a imaginação é o tempo de reapropriação da memória, preenchida pelo esquecimento e recuperada pela linguagem.
Todos os seus livros têm base na vida do escritor, sem tratar dessa vida em si. Para escrever é preciso estar distante, de corpo e coração.
A possibilidade de fazer de sua vida um início para a ficção rendeu ao escritor o reconhecimento e os prêmios que o tornaram internacionalmente reconhecido. "Relato de Um Certo Oriente", "Dois Irmãos" e o romance seguinte, "Cinzas do Norte" (Cia. das Letras, 2005), ganharam o Prêmio Jabuti de Melhor Romance. O terceiro também recebeu o Portugal Telecom em 2005. Seus livros foram publicados em diversos países da América Latina e da Europa, o que fez com que o escritor trabalhasse lado a lado com seus tradutores. As diversas expressões características da Amazônia suscitavam dúvidas constantes, o que exigiu que Hatoum trabalhasse também nos processos de tradução.
Não que ele fosse estranho a esse processo, uma vez que é, ele mesmo, tradutor. Estranho foi a experiência do reconhecimento e a necessidade de distanciar-se da vaidade provocada pelos prêmios, entrevistas, pelo assédio da mídia. Apenas o tempo e a paciência mostraram a Hatoum o que parece óbvio: um grande autor é construído a cada livro, devagar, sem sustos. Literatura, como avalia ele, exige trabalho e se faz apenas dele. Estranhou ir a Paris para divulgar a tradução de "Relatos de Um Certo Oriente", voltar à cidade onde, com pouco tempo e pouco dinheiro, era um homem incógnito que escrevia seu primeiro romance.
Hoje, ele sabe que não escreve pelos prêmios (mas não nega apreciá-los) nem pelo reconhecimento. Escreve porque tem um desejo impossível de conter, uma vontade maior do que ele, maior do que a vontade de conhecer Paris quando precisava escrever; maior do que a vontade de percorrer o frisson cultural de São Paulo, onde foi morar em 1998; vontade maior do que viajar o mundo em festivais literários. A vontade de escrever é mesmo até maior do que a vontade de publicar --ele tem um romance guardado na gaveta, escrito entre 1989 e 2000, mas para o qual ainda não chegou a hora. Em compensação, seu último livro, "A Cidade Ilhada" (Cia. das Letras, 2009), fez chegar a vez dos contos. O próximo projeto inclui crônicas e, quem sabe, mais um romance.
Hoje, mora ainda na cidade em São Paulo, em Higienópolis, e pensa nela como cenário para futuros livros. Gosta do caos de São Paulo, do barulho que acha fundamental para escrever. Exercendo uma atividade que é, por si só, solitária, e que se reflete na construção de livros também solitários, vê no movimento incessante da capital paulista um outro ritmo para sua escrita. Talvez por ser um ritmo alheio às suas raízes, um universo de certa forma estrangeiro e interiorizado. Mas, seja como for, Hatoum criou com a cidade uma identidade própria, mais uma dentre as suas várias.
O menino que começou a ler com os livros comprados pela mãe de um livreiro-viajante hoje sente orgulho por seus prêmios, mas insiste que estes trazem prestígio e não muito mais (e brinca, com frequência, lembrando que prestígio também é o chocolate como coco que ele adora). Apesar de ter rodado o mundo, não se vê longe de sua Manaus de origem e assume com orgulho a pluralidade de raízes.
As origens podem ser várias, mas a pátria está na infância, na memória e na língua. São elas que marcam história, que sussurram esquecimentos, que assopram fatos não acontecidos para preencher lacunas. Que dominam as pausas e formam as letras. Que
são donas da solidão e sobrevivência de cada um dos narradores de Hatoum.
terça-feira, 30 de junho de 2009
Mãe teve importância decisiva na literatura de Milton Hatoum
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