sexta-feira, 31 de julho de 2009

Atelier: Magritte - o criador de mistérios

"Tudo o que vemos esconde outra coisa, e nós queremos sempre ver o que está escondido pelo que vemos."


O maior dos pintores surrealistas belgas tem finalmente um museu, em Bruxelas. São mais de 250 obras e documentos que mostram como Magritte passou a vida a subverter a realidade. Estão lá os pássaros-céu, as mulheres enigmáticas, os cartazes elegantes que anunciam tardes de tango.

As manhãs de domingo são confusas. Há dezenas e dezenas de pessoas em cada um dos andares, as vozes dos guias sobrepõem-se umas às outras e as obras mais conhecidas são praticamente inacessíveis - estão rodeadas de turistas e de alunos de História de Arte, com os seus blocos cheios de esboços e apontamentos. O Museu Magritte, o mais recente pólo do Museu de Belas-Artes da Bélgica, na Place Royale, em Bruxelas, tem apenas dois meses, mas é já apresentado como um caso de sucesso, com os seus 75 mil visitantes.

Para Virginie Devillez, directora de projecto deste museu que nasceu em 2005 na cabeça de Michel Draguet, director do Museu de Belas-Artes, e de Charly Hersovici, presidente da Fundação Magritte, e que começou a ser montado três anos mais tarde, o êxito não é surpreendente. "Bruxelas é uma cidade pequena, mas com pessoas de toda a Europa, com um nível cultural elevado", explica ao P2 por telefone. Muitas dessas pessoas estão habituadas à obra de René Magritte (1898-1967) - em livros e catálogos, na publicidade e no cinema - e algumas até já tiveram oportunidade de estar frente a uma das suas obras, em museus europeus ou americanos, mas "não querem perder a oportunidade de ver tantos quadros juntos de um dos pintores mais reproduzidos do mundo".

O novo Museu Magritte tem a maior colecção de obras do pintor surrealista belga. São 250 pinturas, esculturas, desenhos, posters, fotografias e outros documentos, incluindo dezenas de manuscritos e até pautas ilustradas, distribuídos por três níveis de exposição (ao todo são 2500 metros quadrados), segundo um programa que procurou aliar a organização temática à cronológica, apostando na componente cenográfica, inspirada na obra do próprio pintor. "O tom escuro das paredes vem directamente d' O Império das Luzes, é ele que faz sobressair os quadros como se fossem jóias", diz Devillez.

As jóias, garante a directora deste projecto, que custou sete milhões de euros e junta dois dos mais importantes acervos de obras de Magritte - o da sua viúva, Georgette, e o de Iréne Harmoir-Scutenaire, viúva de Louis, um dos maiores amigos do pintor - e empréstimos de várias colecções privadas, podem ser alguns dos quadros mais importantes (como Le Domaine d'Arnheim ou Le Retour), cartas íntimas ou fotografias do casal Magritte. "Neste museu, que, por causa da mistura de material biográfico e documental com a obra, pode parecer mais uma exposição temporária do que permanente, a vida de Magritte é importantíssima, porque ajuda a contextualizar os vários períodos de criação", explica Devillez. "Sem compreendermos a vida, as mudanças que ela trouxe, não podemos compreender o artista", diz, acrescentando que a palavra "compreender", quando usada em relação à obra de Magritte, é sempre "vaga" e "dúbia" - só o simples esforço de compreensão por parte do visitante irritaria o artista, que preferia que a sua pintura fosse sentida como poesia e não analisada como uma substância qualquer na bancada de um laboratório.

O que Magritte faz a cada quadro, a cada um dos deliciosos filmes exibidos no museu (como o que nos mostra Irène Hamoir comendo uma banana), é desafiar quem o observa, com uma irreverência que parece ter tanto de cerebral como de infantil. É com essa irreverência que se propõe subverter a realidade a partir das coisas simples do dia-a-dia, um jogo de criança que transporta para a vida adulta.

Começo difícil
"Não consigo pensar em circunstância alguma que possa ter determinado a minha personalidade ou a minha arte. Não acredito no 'determinismo'", diz o pintor, num dos muitos aforismos distribuídos pelas paredes do museu. Magritte não gostava que críticos e jornalistas procurassem explicar a sua arte a partir da sua vida, nem que tentassem encontrar numa reflexos da outra. Mas esse processo, irresistível para especialistas como Marcel Paquet e Patrick Roegiers, é quase sempre inevitável.

Magritte nasceu no Sul da Bélgica, em 1898, numa família de baixos recursos, com um pai alfaiate e uma mãe modista de chapéus. Por natureza calado e tímido, Magritte e os seus dois irmãos mudaram frequentemente de casa com os pais, que procuravam dar-lhes uma vida melhor. Adeline, a mãe, preocupava-se com a educação dos seus três rapazes, mas cedo deixou de os acompanhar - suicidou-se quando Magritte era ainda um adolescente (teria 13 ou 14 anos, os dados divergem). As memórias mais fortes desses primeiros anos, haveria de contar mais tarde, diziam respeito a uma caixa cheia de objectos que ficava sempre junto ao seu berço, a um balão de ar quente pousado no telhado da sua casa, e ao rosto da mãe coberto por um pano quando retiraram o seu corpo do rio (há quem veja uma relação evidente entre este momento e quadros como Os Amantes, de 1928).



É a pintar que Magritte se sente livre. Começara a estudar pintura em 1910, em Châtelet, e continuara, três anos mais tarde, em Charleroi, quando já começava a ser evidente o poder que tinham sobre ele as aventuras de Fântomas, as viagens de Robert Louis Stevenson e o universo literário de Edgar Allan Poe.

Já andava na Academia de Belas-Artes há mais de dois anos quando decidiu fazer os primeiros quadros, inicialmente cubistas, depois futuristas. Começa a dar-se com alguns pintores e poetas, entre os quais E.L.T. Mesens, marca duradoura na sua vida e no seu trabalho, tal como Marcel Leconte.

Enquanto estuda e anda pelos cafés de Bruxelas, em tertúlias e discussões políticas (aderiu duas vezes ao Partido Comunista, para o qual chegou a desenhar cartazes, que nunca foram aceites), Magritte vai formando o seu imaginário, em que a realidade aparece invertida. "Quer mostrar o mistério da vida", explica Devillez, "mas só para provar que ela é estranha e importante."

Na fachada de um dos cafés que Magritte e o seu grupo frequentavam - La Fleur en Papier Doré, na Rue des Alexiens - brinca-se com a histórica ligação do maior dos surrealistas belgas (é assim que é descrito) àquele pequeno espaço que ainda mantém a decoração original, com a sua lareira rude e velhas molduras nas paredes amareladas, cobertas de colagens e de frases encorajadoras: "Todo o homem tem direito a 24 horas de liberdade por dia."

"Isto não é um museu: aqui consome-se...", diz a parede exterior, que fica colada à da florista. Há ruas e praças do centro da cidade, como as do bairro de Le Sablon, em que o pintor do chapéu de coco - imagem de marca de Magritte (lembram-se do quadro Le Fils de L'Homme, de 1964, que aparece no filme O Caso Tomas Crown?) - se instalou na montra de livrarias, lojas de chocolate e clubes de xadrez, paixão que o autor de L'Oiseau de Ciel (1966, símbolo da companhia aérea Sabena) partilhava com Man Ray e Marcel Duchamp. Mas havia paixões que Magritte não partilhava.

Georgette, sempre Georgette
Ela está por todo o lado. Nos quadros, nas fotografias, nas cartas e nos poemas. Mesmo quando não temos a certeza de que é a ela que Magritte se refere, Georgette está lá, com os olhos grandes, claros, entrando nas sessões fotográficas do marido - com um cachimbo sobre a cabeça pousada na areia ou enrolada num lençol branco amarrotado, divertida - ou como destinatária invisível de uma mensagem, de um esboço.

"No museu há um lindo poema de amor, que provavelmente seria para Georgette, mas não temos certeza", lembra a directora do projecto. A meio do papel amarelecido, escrito à mão, pode ler-se: "Tenho o coração desta mulher. (...) A dois, o nosso poder serve-nos para inventar um empreendimento surpreendente..."

"Magritte era louco por ela, isso sabemos. Há uma carta de 1922 em que admite que não consegue trabalhar por estar demasiado apaixonado. Não consegue pensar em mais nada."

Magritte e Georgette conheceram-se em 1913, escreve Marcel Paquet em René Magritte: O Pensamento Tornado Visível. Ele tinha 15 anos e ela não chegara ainda aos 13. Foi nesse dia, em Charleroi, que andaram pela primeira vez de carrossel (não sabemos se René se atreveu a segurar-lhe na mão). Reencontraram-se em 1920, no Jardim Botânico de Bruxelas, e nunca mais se separaram - Georgette passou a ser o seu modelo e, dois anos mais tarde, também sua mulher.

"Estavam sempre juntos", diz Devillez. "Passamos horas a ler os documentos e chegamos à conclusão de que eles não viviam um sem o outro. Parece um filme. Magritte faz-lhe as vontades, muda de casa porque ela quer um jardim, muda de país porque ela se sente sozinha [foi assim durante a Segunda Guerra Mundial, quando troca o Sul de França por Bruxelas, onde ela ficara]..." Aparentemente, o pintor não tinha dúvidas de que valia a pena. "Feliz aquele que atraiçoa as suas convicções pelo amor de uma mulher", escreve.

O inquieto
Profundamente influenciado pela obra de De Chirico - outro dos grandes do surrealismo -, Magritte desenvolve um universo muito singular, opondo-se por vezes às directrizes da "escola" francesa, liderada pelo poeta André Breton, com quem mantém uma tensa relação de amizade, desde 1927, quando o belga se muda para Paris e os dois partilham horas de trabalho e boémia com o pintor Marcel Duchamp e outro poeta, Paul Éluard.

Nos três anos parisienses do casal Magritte, o pintor torna-se mais livre. Graças a um contrato com uma galeria tem um ordenado e não precisa de perder tempo a trabalhar em publicidade.

"Aqui consolida-se a sua forma de pensar a pintura. O que lhe interessa nela não é a técnica, mas a poesia", explica Devillez. "Magritte não é um espontâneo. Quando começa a pintar, sempre muito lentamente, tem o quadro todo na cabeça, sabe exactamente que tipo de reacção procura do observador." É um "criador de mistérios" que dizia muitas vezes que pintar era cansativo porque implicava pensar de mais.

Quando se percorrem as galerias do novo museu, sente-se a inquietação que marca a sua produção artística, tanto nos quadros mais populares, como La Magie Noire, como nos do chamado período vache, mais luminoso e lúdico, apesar de por vezes muitíssimo duro, inaugurado em 1947 como reacção a uma ruptura com Breton (L'Ellipse e L'Art de Vivre).

"A colecção vache que temos no museu, e que influenciou alguns artistas contemporâneos, é muito significativa", acrescenta a conservadora, para concluir que nesse período, como nos restantes, Magritte se mantém sempre distante. Mesmo quando escreve coisas aparentemente simples como estas: "Amo o humor subversivo, sardas, joelhos, os cabelos compridos das mulheres, os sonhos das crianças, a rapariga que corre pela rua."

Texto: Lucinda Canelas
in Jornal Público | 30 de Julho de 2009

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