segunda-feira, 27 de julho de 2009

Em "O Meu Nome é Legião", António Lobo Antunes dá mais um passo para mudar a literatura




DANIEL BENEVIDES
do portal UOL

Mudar a literatura, criar uma nova linguagem. Simples assim, e bastante ambicioso, é o objetivo do português António Lobo Antunes, que veio ao Brasil no início do último mês de julho para a Flip.

Capa do mais recente livro de Lobo Antunes lançado no Brasil

LEIA TRECHO DO LIVRO
"Os suspeitos em número de 8 (oito) e idades compreendidas entre os 12 (doze) e os 19 (dezanove) anos abandonaram o Bairro 1º de Maio situado na região noroeste da capital e infelizmente conhecido pela sua degradação física e inerentes problemas sociais às 22h00 (vinte e duas horas e zero minuto) na direcção da Amadora onde julga-se que por volta das 22h30 (vinte e duas horas e trinta minutos) hipótese sujeita a confirmação após interrogatório quer dos suspeitos quer de eventuais testemunhas até ao momento não localizadas furtaram pelo método denominado da chave-mestra (sujeito a confirmação também e que adiantamos como provável derivado ao conhecimento do modus operandi do grupo) 2 (duas) viaturas particulares de média potência estacionadas nas imediações da igreja a curta distância uma da outra e no lado da rua em que os candeeiros fundidos (vandalismo ou situação natural?)permitiam actuar com maior discrição após o que se dirigiram para a saída de Lisboa no sentido da auto-estrada do norte utilizando a via rápida que por não se acharem as ditas viaturas munidas do dispositivo magnético necessário à sua utilização registou as matrículas conforme fotocópia anexa aliás não muito nítida e previne-se peitosamente o comando para a urgência de melhoramentos no equipamento caduco: fotocópia número 1 (um) embora perceptível é verdade com uma lupa decente.

Temos motivos para adiantar com base em actuações pretéritas essas sim já aferidas que os suspeitos se distribuíram nos veículos de acordo com a ordem habitual ou seja o chamado Capitão de 16 (dezasseis) anos mestiço, o chamado Miúdo de 12 (doze) anos mestiço, o chamado Ruço de 19 (dezanove) anos branco e o chamado Galã de 14 (catorze) anos mestiço na dianteira e os restantes quatro, o chamado Guerrilheiro de 17 (dezassete) anos mestiço, o chamado Cão de 15 (quinze) anos mestiço, o chamado Gordo de 18 (dezoito) anos preto e o chamado Hiena de 13 (treze anos mestiço assim apelidado em consequência de uma malformação no rosto (lábio leporino) e de uma fealdade manifesta que ousamos sem receio embora avessos a julgamentos subjectivos classificar de repelente (vacilámos entre repelente e hedionda) a que se juntava uma clara dificuldade na articulação vocabular muitas vezes substituída por descoordenação motora e guinchos logo atrás, salientando-se a importância do chamado Ruço ser o único caucasiano (raça branca em linguagem técnica) e todos os companheiros semi-africanos e num dos casos negro e portanto mais propensos à crueldade e violência gratuitas o que conduz o signatário a tomar a liberdade de questionar-se preocupado à margem do presente relatório sobre a justeza da política de imigração nacional. Cerca das 23h00 (vinte e três horas e zero minutos) as duas viaturas alcançaram a primeira estação de serviço do trajecto Lisboa-Porto a cerca de 30 (trinta) quilómetros das portagens tendo parado com os motores a trabalharem
(existia apenas uma furgoneta numa das bombas) diante do estabelecimento envidraçado no qual se efectua a liquidação do montante de gasolina adquirida e onde se pode malbaratar dinheiro em revistas jornais tabaco (espero bem que não álcool) pastilhas elásticas e ninharias. No citado estabelecimento encontrava-se o empregado a conversar sentado à caixa registadora com o condutor da furgoneta e outro empregado mais idoso a varrer o soalho adjacente a uma porta de escritório ou compartimento de arrumos (deseja-se que não destinado à venda clandestina de bebidas espirituosas)
com a placa Interdita A Entrada mal aparafusada à madeira. Os suspeitos apetrecharam-se de gorros de lã e óculos escuros e ingressaram sem pressa no local (de acordo com o depoimento do empregado da caixa um deles e ignora a especificação do indivíduo assobiava) transportando espingardas de canos serrados e pistolas do Exército e concedo-me uma breve digressão no meu entender não inteiramente despicienda para sublinhar no caso de me autorizarem uma nota íntima que as estações de serviço à noite iluminadas na beira do caminho me fazem sentir menos desditoso e só quando regresso de Ermesinde aos domingos de madrugada da visita mensal à minha filha, o mundo com as suas árvores confusas e as suas povoações logo perdidas cujo nome desconheço me surge demasiado grande para conseguir entendê-lo e as bombas de gasolina próximas, nítidas, ia escrever cúmplices mas retive-me a tempo me garantem que apesar de tudo possuo um lugar ainda que ínfimo no concerto do universo, alguém talvez me espere tomara descobrir em que sítio com a chávena de um sorriso numa toalha amiga e eu comovido senhores, eu grato, peço perdão de inserir num documento oficial e em papel do Estado este desabafo importuno e este desejo absurdo de companhia: rodar a fechadura e escutar na despensa, na sala, não ouso sugerir que no quarto uma voz que pronuncia o meu nome
- És tu?
em vez do silêncio do costume e da indiferença das coisas de modo que as estações de serviço à noite, escrevia eu, se avizinham da noção de felicidade que há tanto tempo procuro. Adiante. Prosseguindo o presente relatório de que sem desculpa
(estou cônscio do erro e penitencio-me dele) me desviei os suspeitos transportando espingardas de canos serrados e pistolas do Exército ingressaram sem pressa
(um deles, e a dúvida de qual deles, assobiava) no local sem que o empregado da caixa ou o condutor da furgoneta lhes dessem atenção ocupados a comentarem a notícia
de um periódico desportivo e foi o empregado que varria o soalho adjacente ao escritório ou compartimento de arrumos (o qual não continha, acrescento com alegria, bebidas espirituosas embora não ponha de parte, que vigaristas não faltam, a hipótese de as haverem ocultado antes da minha visita) quem se apercebeu do assalto erguendo a vassoura e prevenindo o sócio - Olha estes miúdos pretos César
sem oportunidade para mais considerações dado que uma das espingardas de canos serrados disparou 5 (cinco) projécteis consecutivos não se lhe notando sangue na roupa, o sangue na parede atrás dele depois de cair em estremeções sucessivos isto é poisando as nádegas no chão a olhar os suspeitos ou não olhando ninguém conforme o meu padrasto levantava a cabeça cega das palavras cruzadas a remoer sinónimos e a baixava de novo preenchendo os quadradinhos em maiúsculas triunfais, a mão direita
(do empregado não do meu padrasto) alongou-se, o médio, que durou mais que os outros dedos encolheu um tudo nada (estou a vê-lo daqui) e pondero se o vento tocava os arbustos lá fora ou os deixava em paz: durante séculos em criança pensei que as árvores sofriam, os teixos por exemplo uma mágoa quieta, eu às pancadinhas nos
troncos
- O que se passa com vocês?

e nenhuma resposta, dores secretas como em geral os ramos, fingem continuar, disfarçam-nas e no entanto quando pensam que os não vemos fabricam um lagarto numa ranhura da casca que é a sua forma de segregarem lágrimas, o condutor da furgoneta julgou recuar um passo e proteger-se com uma pilha de revistas sem recuar passo algum, uma coronha de pistola apanhou-lhe o ombro e a metade esquerda dos ossos que uma sobrancelha a tremer amparava, desajustou-se da direita o meu padrasto esse aguentava a cólica renal com o auxílio não da sobrancelha, da palma empurrando-a para o interior da cintura
- Não me atormentes agora

e tenho a certeza que os arbustos da estação de serviço a sacudirem flores miúdas sem nome, tantas folhas a vibrarem desejando que as socorrêssemos
- Eu eu

um dos suspeitos deu a volta ao balcão e entornou a gaveta da caixa num saco, um automóvel desceu para as bombas de gasolina porque buxos novos surgiram do escuro, uma claridade geométrica fixou-se no tecto, aumentou e o que eu não pagava para observar os buxos, o condutor da furgoneta indiferente a eles mancou um passo na direcção dos faróis com a sobrancelha a puxá-lo e a metade que não pertencia à sobrancelha um peso mole a resistir, o cano da pistola um fuminho, ninguém se apercebeu do ruído (ter-me-ia apercebido do ruído se estivesse com eles?) o condutor da furgoneta de joelhos contra a vontade da sobrancelha indignada com a desobediência
- O que é isto?

e isto é um peito que tomba, não uma pessoa, um sapato a dilatar-se, a argola das chaves que se desprendeu da algibeira e a argola que esquisito um ruído imenso, lento, o empregado da caixa sem entender o sapato enorme e as chaves, um nariz que escorregou para a boca (engole-o não o engole?) os (não engole) suspeitos em número de 8 (oito) e idades compreendidas entre os 12 (doze) e os 19 (dezanove) anos abandonaram a estação de serviço às 23h10 (vinte e três horas e dez minutos), continuaram para Santarém e os arbustos serenos, a certeza que num ponto do escuro, talvez na minha cabeça (creio que na minha cabeça) uma janela a bater, o meu padrasto para a minha mãe do interior das palavras cruzadas
- A janela

(de tempos a tempos quando menos espero um incómodo de gonzos, a voz dele
- A janela

eu a espreitar em torno, nem uma corrente de ar para amostra e no entanto a certeza de um estranho respirando-me no pescoço comigo a perguntar
- Qual janela?)

as viaturas furtadas cortaram à direita 12 (doze) quilómetros acima e o dispositivo magnético esquecido da sua obrigação
(- Qual janela?)

não assinalou as matrículas, pinheiros bravos, carvalhos (não sou forte em Botânica e estava aqui a pensar se arrisco castanheiros ou não, não arrisco, como descrever um castanheiro em condições?) vivendas de emigrantes algumas por completar
(quase todas por completar, basta de imprecisões rapaz, gosto de me tratar por rapaz aos sessenta e três anos, dá-me a ilusão que a morte, deixemos o assunto, siga a banda) um cozinheiro de cerâmica de tamanho natural com a ementa em riste a anunciar uma churrascaria ou seja uma esplanada de cadeiras empilhadas e guarda-sóis recolhidos, a sedazinha turva de um gato a escorrer almofadado de um tapume, um rádio numa varanda aberta que os suspeitos não escutaram, depois do chafariz uma travessa, duas travessas, a nossa casa que podia ser acolá e não era, a minha mãe para o meu padrasto

- Fazias melhor se largasses o jornal e vedasses a janela

insistem que me pareço com a minha mãe e argumento que não, comparando com o retrato
(não me lembro em pormenor das feições) talvez as orelhas e o contorno do queixo, a expressão nem sonhar, de acordo com a minha mãe de resto eu o meu pai por uma pena
- Já não me bastou um tenho que aturar outro quando o meu pai um pacífico coitado, depois da reforma cantava no orfeão da paróquia e via a chuva cair, tardes e tardes no sofá murmurando não imagino o quê
(a minha mãe imaginava- Lá estás tu)

a ver a chuva cair, uma travessa, duas travessas, no fim da segunda travessa um largo e no largo uma loja de telemóveis, o meu pai trabalhou na Polícia também não como agente de investigação claro, faltavam-lhe miolos, nos Serviços Gerais, copiava minutas, carimbava, contava as moscas no estore, o chefe do fundo
- A pensar na morte da bezerra Gusmão?

quatro dos suspeitos, 23h48 (vinte e três horas e quarenta e oito minutos) saíram dos bancos da retaguarda das viaturas furtadas e quebraram a montra sem se preocuparem com o alarme que principiou aos uivos, não uma campainha, uma espécie de sereia a sacudir o sistema solar a mãos ambas, onde moro as ambulâncias descolam-me o lustre com os seus berros de esfaqueadas e os pingentes arrepiam-se trocando de posição enquanto os vizinhos
- Que susto

os suspeitos encheram as bagageiras de caixotes cabos instrumentos acessórios e decorridos onze minutos precisamente, às 23h59 (vinte e três horas e cinquenta e nove minutos) seguiram em sentido inverso de regresso a Lisboa, a segunda travessa, a primeira travessa, o chafariz com uma torneira de latão que mesmo fechada
continuava a pingar, a música do rádio que não escutavam enquanto a sereia transmitia as suas ânsias num deserto de sombras, os pinheiros bravos, os carvalhos, a via rápida que desta vez(há coisas que funcionam valha-nos isso num país em decadência)
fotografou as matrículas conforme consta do respectivo documento apenso
(no caso de não ter caído ao chão)
que se o meu pai continuasse vivo e escriturário
(não tenho vergonha do meu pai não se acredite nisso)
lhe passaria pela mesa para o visto de entrada
(não se demorava a lê-lo pois não senhor?)
terminando no colega que os despejava num cesto em que não se mexia, mais maçadas para quê o que não falta são crimes
(- Desculpe se a contrario mãe mas o que herdei do meu pai?)
hesitaram na estação de serviço na volta entramos não entramos, principiaram a travar, guinaram para um cachorro vadio sem conseguir atingi-lo, desistiram da estação de serviço e do bicho que aliás desapareceu numa madeixa de moitas, preferiram um casal num carro, o homem ao volante todo pinoca e a mulher a pentear-se inclinada para a frente no espelho da pala, colocaram o carro do casal entre as viaturas furtadas
(não tenho vergonha do meu pai?)
e foram abrandando tocando-lhe de leve, a mulher deixou de pentear-se e diminuiu no banco, o pinoca tentou obliquar para a outra faixa e uma batida no ângulo do pára-choques impediu-o de maneira que o carro e o casal imobilizados aos poucos, 00h14 (zero horas e catorze minutos) de acordo com o depoimento da mulher sujeito ao erro do medo, na minha opinião eu que refiz o percurso 00h30 (zero horas e trinta minutos) no mínimo e um espaço à direita
para os postes de chamada de quando os radiadores avariam, experimentei-o e uma mudez comprida
(afinal nem uma só coisa trabalha num país em decadência)
eu para ali feito parvo de aparelho no ar e o meu ajudante pelo vidro descido
- Largue isso
cheio de opiniões o presunçoso, faça assim não faça assim, mais alto que eu, com dois terços da minha idade e o cabelinho abundante, decidido a tomar-me o lugar e há-de tomar-me o lugar é uma questão de meses porque neste Purgatório injusto são os que sabem agradar aos patrões não os que trabalham quem ganha
(tenho sentido isso na carne, não me promovem há anos, a mesma função, o mesmo ordenado e agradece)
e ao tomar-me o lugar não me atreverei a palpites pelo vidro descido
- Largue isso
fico à espera obediente, composto, tem razão senhora, eis o meu pai chapadinho, dêem-me um carimbo e eu feliz, humedeço-o na almofada e o escudo da República brilhante de tinta no ângulo superior direito das páginas, o carro do casal adornado na berma com as viaturas furtadas encostando-se a ele, não árvores desta feita e por conseguinte não hipótese de castanheiros que não me atreveria a descrever, pinheiros e carvalhos vá lá, castanheiros
não, tenho consciência dos meus limites, não árvores, um carril de protecção a impedir um valado com um ribeiro em baixo, visto que lodo a saltar entre caniços e na primavera seixos transformados em rãs que ganham pernas, se arqueiam, diz-se que comem mosquitos, os suspeitos fora das viaturas sem gorros nem óculos, um branco,
um preto e seis mestiços
(creio ter mencionado isto tudo)
de idades compreendidas
(curiosa expressão, quem compreende as idades?)
entre os 12 (doze) e os 19 (dezanove) anos, o mais velho o branco a que chamam Ruço e não mandava um cisco, o pinoca a travar as portas, a mulher esquecida do cabelo
- Jesus
não se estava na primavera e portanto não rãs, seixos que não ligavam aos mosquitos e ervinhas com ambições de juncos não realizadas por enquanto, os suspeitos utilizaram as chaves-mestras nas portas, um camião passou por eles com um atrelado de vitelos de que se distinguiam reflexos de pêlo, mandíbulas, baba, um dos pneus solto ia dançando no eixo e o sujeito na cabine com uma ferradura no tejadilho a dar sorte, nunca acreditei em amuletos, ferraduras figas trevos de quatro folhas de esmalte, ou se nasce de cu para a lua ou não se nasce, não nasci e acabou-se não vou chorar por isso embora haja ocasiões em que uma lágrima não me caísse mal, impeço-a de chegar ao olho empurrando-a com o polegar e que remédio tem ela senão voltar para dentro e desistir, adeus lágrima, a porta do pinoca e a porta da mulher escancaradas, o pinoca"


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Não se pense porém que o escritor, sempre lembrado para o Nobel, é um mero arrogante. Na verdade sua postura é até meio espartana e relativamente modesta, a julgar por outras declarações. Obstinado, fica feliz quando consegue escrever uma página em um dia -- para ele, "ficção é trabalho árduo". Corrige incansavelmente tudo o que faz até sentir que descobriu o "som" do texto. E, num lance de anti-vaidade (que também pode ser uma vaidade), divide a responsabilidade com os leitores, considerando-os "co-autores".

Tudo isso fica mais ou menos evidente em "O Meu Nome é Legião", livro de 2007, agora lançado no Brasil (juntamente com "Explicação dos Pássaros", de 1981). Mais ou menos porque o papel do leitor é um tanto difícil, exige dedicação e tenacidade.

Ainda que Antunes considere seus livros fáceis, fato é que sua escrita tem a densidade e o emaranhamento de uma selva profunda, com poucas clareiras. Mas também é verdade que, ao se aventurar pelas frases incomuns de seus romances, o leitor chega ao final recompensado por uma experiência literária única, estimulante.

"O Meu Nome é Legião" é uma verdadeira polifonia de vozes, tempos e registros diferentes. Começa na forma de um relatório policial sobre os crimes cometidos por uma gangue de garotos da periferia de Lisboa: "um branco, um preto e seis mestiços (...) de idades compreendidas entre os 12 (doze) e 19 (dezanove) anos". Há muita violência e a forte sugestão de ódio racial, o que remete ao período colonial. Aos poucos, o policial em final de carreira que anota os fatos deixa-se levar por memórias e pensamentos aparentemente aleatórios.

O escritor português António Lobo Antunes durante entrevista em Paraty (RJ), onde esteve para participar da Flip (03/07/2009)

A narração então se esparrama por vias de curvas quase impossíveis e cruzamentos bruscos. A impressão é que o livro ganha vida autônoma, toma as rédeas para si. A pontuação se rebela, os parágrafos são cortados no meio por estranhos parênteses, as falas surgem inesperadamente, confundindo-se com os fluxos de consciência, nem sempre com o habitual travessão. Imagens variadas passam pelos olhos à medida em que as vozes e testemunhos se alternam e/ou se sobrepõem.

Ora sabemos o que pensa a mãe de um dos criminosos, o chamado Miúdo, ora a irmã de outro, o Hiena; ora deparamos com o depoimento íntimo de uma prostituta branca, amante do Gordo, o mais silencioso da gangue, ora mergulhamos nas impressões de um avô desencantado.

Nesse meio tempo, a polícia vai fechando o cerco e matando alguns dos delinqüentes com requintes de crueldade.

Perto do final, "ouvimos" a versão dos miúdos, de como foram mal amados, maltratados, excluídos na infância. O livro que tratava das desigualdades -- raciais, sociais, geográficas --, da violência urbana extremada e, em última instância, do Mal que nos invade como demônios, fala agora de Amor, amor pela humanidade, compaixão. É assim que o próprio escritor vê seu romance, que considera um de seus melhores.

O título, resumo simbólico do enredo, surgiu para Antunes só no final da escrita. Vem de um episódio no Evangelho de São Lucas. Jesus se encontra com um homem nu e desfigurado, possuído por espíritos malignos, e pergunta por seu nome. "O meu nome é legião", responde o infortunado, "porque somos muitos".



Em "Explicação dos Pássaros", Lobo Antunes trata do fim de um relacionamento


"Explicação dos Pássaros"
Trata-se do quarto romance de António Lobo Antunes e o primeiro propriamente de ficção, surgido depois dos autobiográficos "Memória de Elefante" (1979), "Os Cus de Judas" (1979) e "Conhecimento do Inferno" (1980), que tratam de sua experiência como psiquiatra em Lisboa e como médico na guerra de Angola.

"Explicação dos Pássaros" traz já a marca de seus escritos mais audaciosos, adotando a técnica polifônica, com andamentos para trás e para a frente no tempo.O autor declarou ser esse o primeiro livro do qual não se envergonha. E que foi o único a lhe sair rápido: escreveu-o em apenas seis meses ("um milagre").

A história trata do fim de um relacionamento, mas também, de certa maneira, de Portugal. O professor universitário Rui S. viaja da carro com sua segunda mulher, Marília, por quatro dias. Atormentado por recordações, está decidido a pedir-lhe a separação.

Lobo Antunes recebeu em 2007 o Prêmio Camões e em 2008 o Juan Rulfo.

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