quarta-feira, 15 de julho de 2009

Luiz Fernando Carvalho: 'Machado é empurrado goela abaixo dos jovens'


*do "Megazine", do jornal O Globo

Não poderia haver muitos lugares melhores para um papo sobre o universo de Machado de Assis. Os conselheiros da Megazine encontraram o diretor de TV e cineasta Luiz Fernando Carvalho numa livraria do Centro. Perto da seção Literatura Brasileira, a galera encheu o artista de perguntas sobre a microssérie “Capitu”.

A arrojada adaptação que Carvalho fez do clássico “Dom Casmurro” acaba de ser lançada em DVD (os extras trazem making of, entrevistas, cenas inéditas e até imagens dos atores em oficinas teóricas). É a chance para quem não ficou acordado até tarde quando a série ia ao ar, por volta da meia-noite.

O diretor de minisséries como “A Pedra do Reino” e “Hoje é dia de Maria” reafirmou a modernidade de Machado e criticou a forma como o escritor é apresentado em algumas escolas.

— Machado de Assis vive sendo empurrado goela abaixo dos jovens, e essa obrigatoriedade gera leitura burocrática. Tem que desencaretar esse processo — afirma.

MAYÃ FURTADO: Por que levar a dúvida sobre a traição de Capitu do livro para a TV?
LUIZ FERNANDO CARVALHO: Porque essa dúvida é um elemento de modernidade na literatura de Machado. Aquela época era cheia de moralismos e preconceitos, e ele cria uma narrativa na qual a dúvida é mais importante que simplesmente “sim” ou “não”. É uma proposta de interatividade já naquela época. Machado joga com as emoções do espectador, chama para decidir e deixa em aberto. Tirar tudo isso seria reduzir essa modernidade.

DANIEL FRAIHA: A linguagem dos seus trabalhos é uma inovação na TV. Mas o público em geral se identifica?
LUIZ FERNANDO: O público em geral é formado por uma linguagem padronizada. Eu luto contra essa repetição e duvido das verdades absolutas. Algumas vezes é um risco. Pode dar certo ou errado. Por
exemplo, quando me aproximo de um livro como “O romance d’A Pedra do Reino”, de Ariano Suassuna, de universo hermético, centrado na cultura do Nordeste, o espectador do Sul pode se perder. Mas também pode se perguntar: “o que será Guerra de Princesa?” e, a partir daí, aprender sobre seu próprio país. É um ganho infelizmente não computável.

LUCAS DE TOMMASO: O que falta para a TV brasileira?
LUIZ FERNANDO: Não sou especialista, mas talvez grande parte dos jovens se sinta pouco representada, como crianças, negros ou necessitados. Na maioria, ainda são representados por estereótipos.

MAYÃ: Você acha que os jovens de hoje estão antenados com a literatura?
LUIZ FERNANDO: São antenados, sim. Mas ainda há preconceito com o livro, que é fruto da forma como se apresenta a literatura. Levei Machado para a TV pensando nisso. Ele vive sendo empurrado goela abaixo dos jovens, e a obrigatoriedade gera leitura burocrática: um dever de casa, quando deveria ser um prazer. “Dom Casmurro” é precipitado sobre alunos de 14, 15 anos. Não me parece a idade adequada.

DANIEL: Como apresentar literatura sem obrigar?
LUIZ FERNANDO: Não sou pedagogo. Existem mil maneiras, e com “Capitu” estou propondo uma. É preciso desencaretar esse processo. A maioria das escolas dá a Machado a pompa da oficialidade, a aura inacessível de presidente da Academia Brasileira de Letras (ABL). Machado não pode estar numa redoma. As escolas deveriam jogar essa redoma contra a parede.

DANIEL: As novelas (e não só as minisséries) poderiam cumprir esse papel?
LUIZ FERNANDO: O entretenimento deve apresentar o mundo de modo lúdico, e, logo, tudo é possível. Mesmo em se tratando de novelas. Temos de entender sua abrangência, o poder de
influenciar espectadores, para o bem ou para o mal. Me afastei de novelas por não me achar capaz de resolver essa equação. Mas desejaria vê-las num papel maior que o de simplesmente arrebanhar audiência, que seria o de formar cidadãos.

DANIEL: Uma novela também poderia ter a dúvida no ar, como em “Dom Casmurro”?
LUIZ FERNANDO: O espectador de hoje foi formado nos últimos 20 anos, tempo em que vendemos um modo de fabulação. Independentemente de ter qualidade ou não, esse modo se repetiu e uma mudança radical agora seria rejeitada. Mas Machado escreveu seu romance no século XIX. Isso aponta algo, não?

LUCAS: Seus últimos trabalhos passaram muito tarde. Isso complicou o alcance deles?
LUIZ FERNANDO: Levei “Capitu” para a TV por conta da abrangência. A TV não podia deixar Machado de Assis passar em branco! Para minha felicidade, a maioria dos telespectadores foi de jovens. Mas
o horário prejudicou, sim. Era muito tarde. Certos episódios entraram perto da meia-noite. Apesar disso, Machado deu média de 15 pontos na madrugada. Alto lá, é uma bela audiência!

MAYÃ: Foi intencional usar atores menos conhecidos na microssérie? Por quê?
LUIZ FERNANDO: O país tem muitos talentos, e esse baú deve ser revirado. Não devemos bater sempre na mesma tecla. Vejo um certo exagero nas escalações. De modo geral, toda a indústria dita cultural produz essa distorção. E os excessos desmitificam as personagens. Até mesmo grandes atores são vulneráveis à diluição de seus talentos pela exposição desnecessária.

Nenhum comentário:

Postar um comentário