sábado, 18 de julho de 2009

O Resgate do Escritor Esquecido


A Presença lançou 'Paralelo 42', o primeiro volume da 'Trilogia USA' do escritor norte-americano. Está em marcha uma operação de recuperação do autor, neto de madeirenses, que começou em Abril com a publicação de 'Manhattan Transfer'. Os outros dois volumes da 'Trilogia' - '1919' e 'The Big Mone'y - serão editados até ao fim do ano

Hoje é quase um desconhecido. Mas há 70 anos era um dos nomes mais famosos e respeitados da literatura americana. Sartre chamou-lhe "o maior escritor do nosso tempo". E era um tempo - esse de entre guerras e mesmo o do pós-II Guerra - de grandes romancistas e poetas. Foi o mais inovador e, formalmente, o mais criativo e exigente dos autores da "geração perdida", um grupo que incluía nomes da envergadura de um Hemingway ou de um F. Scott Fitzgerald.

O desconhecimento actual de John Dos Passos ainda é mais difícil de conceber se recordarmos que o seu trabalho em Manhattan Transfer influenciou obras como Berlin Alexanderplatz, que Alfred Döblin publicou no final dos anos 20, e que o Sartre dos Caminhos da Liberdade é devedor também das suas técnicas inovadoras. Norman Mailer confessou a sua admiração e influência, e outros nomes poderiam citar-se, como Günter Grass ou Alexander Soljenitsyne.

Mesmo que a sua decadência criativa possa ter sido longa e penosa (o que muitos críticos contestam), como explicar a subalternização evidente de hoje e o desconhecimento das novas gerações? Uma explicação possível é a profunda viragem ideológica que ele iniciou em plena Guerra Civil de Espanha, após a morte do seu amigo e tradutor José Robles (ver texto em baixo). O amigo de Hemingway, o apaixonado por Espanha, o defensor da República contra o golpe franquista tornou-se um obstinado adversário das técnicas de "terror estalinista" a que assistira durante a guerra. Acabou a apoiar o senador Joseph McCarthy na "caça às bruxas" que este empreendeu, em plena Guerra Fria, contra todos os resquícios ou aparências de "vermelho" na vida política, social e cultural americana. O establishment cultural americano, maioritariamente "liberal", nunca lhe perdoou. A começar, aliás, pelo próprio Hemingway, que acabou a cobri-lo de insultos (sem nunca lhe citar o nome) no livro póstumo Paris É Uma Festa.

De uma coisa Dos Passos nunca se arrependeu: do seu activismo social dos anos 20 e da luta que travou contra a execução de Sacco e Vanzetti, dois anarquistas ítalo-americanos condenados à morte por crimes que não cometeram e com provas grosseiramente forjadas. De certo modo, a publicação agora em Portugal das suas obras mais relevantes vem resgatar John Dos Passos de um esquecimento duplamente injusto: pela qualidade e inovação da sua escrita (uma surpresa para as novas gerações de leitores); e até por uma razão mais "nacionalista", já que o escritor era neto de um madeirense que emigrou para os Estados Unidos em 1830. Embora nunca chegando a falar bem português, Dos Passos aproximou-se progressivamente do país dos seus antepassados, que visitou algumas vezes, e tentou mesmo traduzir Os Lusíadas.

Filho ilegítimo de um advogado (situação regularizada aos 12 anos, pouco depois de o pai se ter casado com a mãe), John Roderigo (sic) Dos Passos nasceu em Chicago, em 14 de Janeiro de 1896. Curiosamente, o pai era advogado de grandes empresas e defensor dos grandes impérios industriais, enquanto o jovem John Roderigo iria irromper na literatura com a sua denúncia das "duas Américas" (a dos ricos e a dos pobres) e os retratos de personagens que tentavam encontrar o seu lugar numa sociedade gigantesca em tudo, até nas injustiças.

O "Joyce americano" (como também o qualificaram) não perdeu o carácter inovador nem a força da análise ou do desenho das personagens nas suas narrativas corais. A publicação de Paralelo 42 e dos outros livros da Trilogia USA arrisca-se, assim, a ser um dos grandes acontecimentos do ano literário.

Texto: Albano Matos
in Diário de Notícias (Portugal) | 17 de Julho de 2009

Nenhum comentário:

Postar um comentário