domingo, 26 de julho de 2009

Comentários sobre a prova de Literatura da UFPel (Inverno 2009)


As críticas que tenho a fazer são as mesmas já colocadas em relação a processos seletivos anteriores: o espaço dedicado à Literatura é muito reduzido e e não há coerência na elaboração do exame.

Um programa com 19 leituras obrigatórias nunca será contemplado por uma prova com duas questões. A Universidade deveria estimular a leitura do texto literário valorizando os livros solicitados em maiores proporções, enfocando aspectos de Língua Portuguesa e de Literatura concomitantemente em diversas questões. A prova é assim designada: "Língua Portuguesa e Literatura Brasileira", sugerindo que ambas estão entrelaçadas, no entanto, a prova de Português é conduzida por um tema que a perpassa integralmente (no caso, a atividade jornalística e o exercício da liberdade de expressão), enquanto a Literatura aparece totalmente desconectada, sem qualquer relação com o tema da prova (que é aproveitado inclusive para a Redação), e sem nenhuma unidade temática entre as abordagens das duas questões que enfocam textos literários. Falta obedecer os critérios de coesão e coerência na elaboração desse exame.

Ademais, não posso deixar de reiterar minha preocupação quanto ao baixíssimo nível de leitura e a escassa bagagem cultural que se exige do candidato em uma prova em que a Literatura tem quase o mesmo peso que a leitura de charges ou tirinhas. Que tipo de acadêmico se está selecionando? Que tipo de Universidade se quer construir? Ou essas perguntas não estão norteando a concepção do processo seletivo ou estão sendo conscientemente desprezadas, o que seria mais grave.

Quanto às questões de Literatura em si, não há problemas graves, nenhum aspecto que possa prejudicar sua validade, ocorreu com um dos testes do último vestibular de verão. Vamos à análise.

1- Analisa as afirmações abaixo, tomando como base a obra Lendas do Sul, de João Simões Lopes Neto.

I. A obra Lendas do Sul apresenta, entre outras, três importantes lendas da nossa cultura: “O Negrinho do Pastoreio”, “A Mboitatá” e “A Salamanca do Jarau”. Nas duas primeiras, temos Blau Nunes como narrador, já na terceira, o temos como protagonista da história.

II. É procedimento habitual em João Simões Lopes Neto a universalização de um tema regional, dando-lhe caráter filosófico. As lendas “A Mboitatá” e “A Salamanca do Jarau” são bons exemplos disso. A primeira discute a essência do ser e sua impossibilidade de transferência e apropriação, já a segunda alegoriza a busca do
sentido da existência humana, triunfando, no final, o materialismo.

III. “A Mboitatá” é uma lenda que tem origem nas fantasias criadas pelas aparições de fogos no campo produzidos pela fosforescência de restos de ossadas.

Está(ão) correta(s) a(s) afirmativa(s)
(a) I apenas.
(b) I, II e III.
(c) I e III apenas.
(d) I e II apenas.
(e) II apenas.
(f) I.R.


Um aspecto elogiável da prova é a colocação da literatura regional, diferenciando nosso vestibular das tendências de um processo seletivo nacional como o ENEM.

A afirmativa I está correta. As três lendas citadas são patrimônio cultural gaúcho, reelaboradas pelo estilo simoneano. O único aspecto problemático ñesse item é o que se refere a Blau Nunes. Em nenhum momento está explícito na obra que o narrador de a M'Boitatá e o Negrinho do Pastoreio seria Blau. Pode-se inferir essa informação pelo conhecimento da totalidade da obra do autor, considerando-se a linguagem empregada pelo narrador de Contos Gauchescos. Quanto à sua colocação em A Salamanca do Jarau, de fato, ela se dá na forma de protagonista, sendo o foco narrativo em 3ª pessoa.

A afirmativa II está errada. Embora faça justa alusão ao Regionalismo Universal e ao caráter filosófico da obra, não se afigura verdadeira quando diz sobre A Salamanca do Jarau: alegoriza a busca do sentido da existência humana, triunfando, no final, o materialismo"(grifo meu). Ao final da narrativa, Blau devolve a moeda mágica ao Sacristão, pois prefere a amizade de sua gente ao dinheiro infindável que lhe trouxera solidão.

A Afirmativa III está certa, pois alude ao fato de A M'Boitatá ser um relato mítico que explica, de forma imaginativa, o fenômeno natural dos fogos-fátuos.

Portanto, RESPOSTA CORRETA: C


2- Lê este poema, de Manuel Bandeira

Consoada*

Quando a Indesejada das gentes chegar
(Não sei se dura ou coroável)
Talvez eu tenha medo.
Talvez sorria, ou diga:
- Alô, iniludível!
O meu dia foi bom, pode a noite descer.
(A noite com os seus sortilégios.)
Encontrará lavrado o campo, a casa limpa,
A mesa posta,
Com cada coisa em seu lugar.

(*ceia da noite de Natal)

O eu-lírico

(a) mantém uma postura altiva e de enfrentamento com a “Indesejada das gentes”, traduzida pelo escárnio com que a recebe.
(b) alude à morte como um ente não estimado, que não se pode subjugar nem ludibriar com subterfúgios.
(c) apresenta-se preparado para a morte, com todos os deveres cumpridos. O “campo lavrado” alude à infância de trabalhos pesados de Bandeira.
(d) satiriza o natal, assim como em outras obras o fez com as datas cristãs, imaginando-o como a época de morte simbólica para todos.
(e) traduz, com o tema “morte”, o sentimento do mundo, que enfrentava à época a possibilidade real de uma nova guerra, ainda mais mortífera que a Segunda.
(f) I.R.


Alternativa a:incorreta
Não há postura de enfrentamento, pois o eu-lírico reconhece que "talvez tenha medo" e refere-se à morte como "iniludível" (que não se pode enganar), colocando-se de maneira relativamente conformista em relação ao fim da vida.

Alternativa b: correta
Alude à morte como um ente não estimado - "Indesejada das Gentes" é um eufemismo para referir-se à morte.
(...)que não se pode subjugar nem ludibriar com subterfúgios - Isso está expresso em "Iniludível" e implícito na postura conformista do eu-lírico em "pode a noite chegar", sendo a "noite" uma referência metafórica à morte.

Alternativa c: incorreta
O problema está na referida "infância de trabalhos pesados" de Bandeira. Sabe-se que o poeta, desde cedo teve sua vida limitada pela tuberculose, não podendo submeter-se a grandes esforços físicos.

Alternativa d: incorreta
Não há sátira ao Natal, nem no poema, nem no restante da obra do autor, mas sim o que se pode interpretar como uma auto-ironia, pois sua a morte viria numa noite de Natal, momento em que a vida é celebrada.

Alternativa e: incorreta
O tema da morte é tratado numa perspectiva individual, e não social como em Drummond (autor de Sentimento do Mundo). Além disso, o poema em análise figura na obra Libertinagem, de 1930, anterior, portanto, à Segunda Guerra Mundial.

RESPOSTA: B

É isso. Esta foi mais uma prova da UFPel, com mais problemas do que acertos. Minha intenção aqui é sempre a de contribuir para que tenhamos um processo seletivo de maior qualidade, digno dos esforços que fazemos nós, professores e estudantes.

Agora é aguardar com otimismo o resultado. Sucesso a todos!

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