sábado, 4 de julho de 2009

Michael Jackson: O Jesus negro do pop


*matéria do jornal "O Povo"

Figura ao mesmo tempo emblemática e fragilizada, Michael Jackson é tema de entrevista com o escritor e jornalista musical Alex Antunes. Para o repórter da Rolling Stone, o astro deixa um legado genial na música e um exemplo reprovável de ser humano


Compositor talentoso, mas de personalidade frágil. Essa é a imagem que o jornalista Alex Antunes tem de Michael Jackson. A história de Alex passa pela revista Bizz, especializada em música e cultura pop nascida em 1985. Dois anos depois, o jornalista tornou-se editor da publicação e, no mesmo ano, criou a revista de cinema Set com o colega Marcel Plasse. A Bizz encerrou as atividades em 2001, retornando a circular quatro anos depois. Em 2007, a americana Rolling Stone ganhou uma versão brasileira, e a Bizz baixou as portas novamente.

Atualmente escrevendo para a Rolling Stone, Alex Antunes é um dos grandes nomes do jornalismo musical brasileiro. Na entrevista, feita a pedido dele por MSN, Alex opina sobre o mundo da música pop depois de Michael Jackson, arriscando-se inclusive em palpites sobre como seria a cultura pop de hoje se o rei nunca tivesse chegado ao sucesso absoluto. (Alinne Rodrigues)

O POVO - O que faz de Michael Jackson o rei do pop?
Alex Antunes - O que mais se nota nos obituários de Michael Jackson é a tentativa de fazer a separação entre o artista (genial) e o ser humano (reprovável), como se ele tivesse de ser salvo dele mesmo (risos). Eu acho que a obra de Michael Jackson junta esses dois aspectos: a arte (inquestionavelmente importante) e a vida dele (incrivelmente frágil e controversa). Nesse sentido, o epíteto “rei do pop” é um reconhecimento e uma sentença de morte. Foi dessa fantasia que ele morreu.

OP - Que pop é esse do qual ele é rei? Qual era a cara dele antes e depois de Michael Jackson?
Antunes - Bom, ele atravessou uma época muito particular, do soul dos anos 1970 ao pop dos anos 1980. Ele juntou as habilidades dele, na música, na dança e no estilo para virar um dos dois protagonistas principais do mainstream dos anos 80, quando o clipe e a indústria de celebridades passaram a ocupar um papel tão importante quanto a música em si. O outro protagonista disso foi a Madonna. É interessante como a atitude dos dois foi diametralmente oposta: o Michael Jackson, que começou como um artista bem mais consistente que a Madonna, acabou sucumbindo à pressão de ser o número um. Já a Madonna, que era uma artista considerada oportunista (não cantava bem, tinha uma produção musical mais precária), revelou-se mestra em se equilibrar entre a notoriedade e a criatividade. Nesse sentido, vem o desentendimento dos dois, numa certa época. O fato é que Michael Jackson, morto, agora pode ser apreciado com mais entusiasmo.

OP - Michael não fundou nem extinguiu o pop, mas foi peça fundamental para que existisse a o gênero como é hoje. Qual foi a contribuição dele?
Antunes - A habilidade em juntar a rítmica do funk/soul com o melodismo da música pop, mais elementos do rock e da eletrônica. Tudo com um polimento e um gosto muito apurado. Na melhor fase, ele trabalhou com um grande produtor, o Quincy Jones, mas quem gravou com ele diz que ele tinha muita voz ativa na produção e sabia exatamente o que queria. A mesma coisa na dança, no vestuário, no imaginário dos clipes, etc. De novo me vem a sensação de que a própria fantasia foi a glória e a desgraça dele (risos).

OP - O trono de Michael tem herdeiros?
Antunes - Não há como voltar atrás no tempo. As coisas nunca serão como nos anos 80. Mas, para mim, o Michael Jackson que deu certo foi o Prince (risos).
OP - Há quase 10 anos Michael Jackson não lançava discos, mas até que ponto ele estava no ostracismo? A carreira dele já havia mesmo acabado?
Antunes - Acredito que sim. O último álbum dele, Invincible, apesar de obviamente ser bem feito, não era nem sombra da vibração da época de Thriller. Esse foi o auge mesmo.

OP - Quer dizer que os fenômenos pop só foram possíveis por causa do modelo da indústria fonográfica nos anos 80? Não haveria como surgir um novo rei do pop na era da internet?
Antunes - Não no mesmo sentido. O pop dos anos 80 foi o paroxismo entre o controle vertical do marketing e o espraiamento (horizontal) da indústria cultural. Hoje só há a horizontalidade da internet, o marketing não tem mais a mesma preponderância. Por isso é difícil surgir alguém tão central quanto Michael Jackson, Madonna, os Beatles ou mesmo Elvis. Aliás, Michael Jackson tinha uma grande ansiedade em se posicionar entre eles, tanto que se aproximou da Madonna, casou com a filha do Elvis e comprou os direitos do catálogo dos Beatles (risos).

OP - Com a morte de Michael, estão pensando em lançar vídeos dos ensaios da temporada em Londres, até com músicas inéditas. Será que ele não estava preparando uma volta triunfal?
Antunes - Ele estava tenso com essa volta, essa era a fragilidade dele. Há artistas que chegam em um estágio acima do bem e do mal, como os Rolling Stones. Os Stones passaram por uma crise no pós-punk, quando o U2 ascendeu, mas voltaram com bom-humor e profissionalismo e atingiram esse estágio. O Michael Jackson se deixou envolver por muitas dúvidas, como se ele ainda tivesse algo a provar. Nesse sentido, a imaturidade crônica dele o traiu.

OP - Sem Michael Jackson, o que seria da cultura pop de hoje? É possível fazer essa projeção?
Antunes - Não. Para produzir uma frase bem bombástica, Michael Jackson não foi o rei do pop, foi o Jesus negro do pop. Ele se sacrificou para que todos conhecêssemos o mundo como é hoje, com dancinhas, roupas malucas e música preta e branca misturada (risos). Falando sério, parte da coisa seria igual, graças à Madonna e ao Prince. Mas Madonna e Prince sempre foram artistas de um viés bem mais adulto, sexual mesmo. Com sua sexualidade sublimada e estilizada, Michael falou de um mundo mais dourado e cor-de-rosa. Claro que, na realidade, as coisas não são assim, e ele mesmo se enrolou na sua vida íntima com sua sexualidade mal-resolvida. Desculpe não ser laudatório, mas a história do Michael Jackson é uma das mais emblemáticas dos nossos tempos. Não entender o sofrimento do artista é não entender essa época.

OP - Como assim?
Antunes - A nossa sociedade vê o ídolo como um ser poderoso. Mas, numa cultura como a do vudu haitiano, têm-se milhões de pessoas anônimas recortando e colando o seu bonequinho. Quem está controlando quem? (risos) Por isso eu disse que a fantasia do Michael Jackson foi sua glória e sua destruição. Se ele não acreditasse tanto no personagem ou usasse o truque que a Madonna e o Prince usam de vez em quando, que é trocar de pele (de imagem, de personagem), talvez ele estivesse vivo e ativo. O título de rei do pop foi uma espécie de condenação no caso dele: se ele entendesse isso como um salvo-conduto para ir em frente, fazendo ‘autocover’ das músicas antigas e não se pondo à prova, talvez realizasse o milagre que os Stones realizaram, que foi reencontrar a própria criatividade (no último álbum). Mas ele se expôs de uma maneira perigosa, com a questão da pedofilia, e aí o tabu é forte demais. Esses artistas e celebridades todos já se expuseram a escândalos, até a casos de estupro e de assassinato (não comprovados), mas ninguém que tocou num aspecto tão delicado - a inocência, e ainda mais alguém que se dizia defensor dela, poderia sobreviver a isso. O Uri Geller deu uma declaração que é quase humorística. Amigo dele, o Uri disse: “Eu acredito na inocência dele, mas eu dizia: Michael, não faça isso” (risos). Foi mais ou menos como o aprendiz de feiticeiro, entregar o poder na mão de alguém imaturo. Os problemas de infância explicam? Claro. Mas a idolatria por uma figura tão frágil também diz um pouco dos problemas de seu público.

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