da Folha Online
Um dos nomes de peso da 7ª Flip (Festa Literária Internacional de Paraty), que acontece de 1º a 5 de julho, o escritor português António Lobo Antunes, 67, conversa com o público no sábado (4), às 19h, na mesa "Escrever é Preciso".
Autor de mais de 20 romances, Antunes foi vencedor do prêmio Camões em 2007 e é tido como o maior escritor lusitano após Eça de Queirós.
Formado em Medicina e especializado em psiquiatria, começou sua carreira de escritor depois de retornar da Guerra Colonial Portuguesa em Angola (1961-1974). Suas primeiras obras destacaram-se pelo forte caráter autobiográfico, enquanto as demais versam sobre os mais diversos temas.
Seu romance "Meu Nome é Legião" (Alfaguara, 2009), recém lançado no Brasil, conta a história de um grupo de jovens que roubam dois carros e praticam crimes bárbaros pela autoestrada. Recontando os acontecimentos inicialmente sob a forma de um relatório escrito por Gusmão, policial em fim de carreira, a obra passa a entrelaçar os pensamentos desse homem solitário aos depoimentos dos outros personagens que, de uma forma ou de outra, estão ligados ao destino dos jovens criminosos.
Aparentemente técnico e objetivo, o texto aos poucos se transforma em uma trama narrativa de múltiplas vozes, criando um mosaico de contrastes sobre a injustiça e a dor.
Leia trecho do livro "Meu Nome é Legião" (Alfaguara, 2009) abaixo.
*
Os suspeitos em número de 8 (oito) e idades compreendidas entre os 12 (doze) e os 19 (dezanove) anos abandonaram o Bairro 1º de Maio situado na região noroeste da capital e infelizmente conhecido pela sua degradação física e inerentes problemas sociais às 22h00 (vinte e duas horas e zero minuto) na direcção da Amadora onde julga-se que por volta das 22h30 (vinte e duas horas e trinta minutos) hipótese sujeita a confirmação após interrogatório quer dos suspeitos quer de eventuais testemunhas até ao momento não localizadas furtaram pelo método denominado da chave-mestra (sujeito a confirmação também e que adiantamos como provável derivado ao conhecimento do modus operandi do grupo) 2 (duas) viaturas particulares de média potência estacionadas nas imediações da igreja a curta distância uma da outra e no lado da rua em que os candeeiros fundidos (vandalismo ou situação natural?) permitiam actuar com maior discrição após o que se dirigiram para a saída de Lisboa no sentido da auto-estrada do norte utilizando a via rápida que por não se acharem as ditas viaturas munidas do dispositivo magnético necessário à sua utilização registou as matrículas conforme fotocópia anexa aliás não muito nítida e previne-se respeitosamente o comando para a urgência de melhoramentos no equipamento caduco: fotocópia número 1 (um) embora perceptível é verdade com uma lupa decente.
Temos motivos para adiantar com base em actuações pretéritas essas sim já aferidas que os suspeitos se distribuíram nos veículos de acordo com a ordem habitual ou seja o chamado Capitão de 16 (dezasseis) anos mestiço, o chamado Miúdo de 12 (doze) anos mestiço, o chamado Ruço de 19 (dezanove) anos branco e o chamado Galã de 14 (catorze) anos mestiço na dianteira e os restantes quatro, o chamado Guerrilheiro de 17 (dezassete) anos mestiço, o chamado Cão de 15 (quinze) anos mestiço, o chamado Gordo de 18 (dezoito) anos preto e o chamado Hiena de 13 (treze) anos mestiço assim apelidado em consequência de uma malformação no rosto (lábio leporino) e de uma fealdade manifesta que ousamos sem receio embora avessos a julgamentos subjectivos classificar de repelente (vacilámos entre repelente e hedionda) a que se juntava uma clara dificuldade na articulação vocabular muitas
vezes substituída por descoordenação motora e guinchos logo atrás, salientando-se a importância do chamado Ruço ser o único caucasiano (raça branca em linguagem técnica) e todos os companheiros semi-africanos e num dos casos negro e portanto mais propensos à crueldade e violência gratuitas o que conduz o signatário a tomar a liberdade de questionar-se preocupado à margem do presente relatório sobre a justeza da política de imigração nacional.
Cerca das 23h00 (vinte e três horas e zero minutos) as duas viaturas alcançaram a primeira estação de serviço do trajecto Lisboa-Porto a cerca de 30 (trinta) quilómetros das portagens tendo parado com os motores a trabalharem (existia apenas uma furgoneta numa das bombas)
diante do estabelecimento envidraçado no qual se efectua a liquidação do montante de gasolina adquirida e onde se pode malbaratar dinheiro em revistas jornais tabaco (espero bem que não álcool) pastilhas elásticas e ninharias. No citado estabelecimento encontrava-se o empregado a conversar sentado à caixa registadora com o condutor da furgoneta e outro empregado mais idoso a varrer o soalho adjacente a uma porta de escritório ou compartimento de arrumos (deseja-se que não destinado à venda clandestina de bebidas espirituosas) com a placa Interdita A Entrada mal aparafusada à madeira.
Os suspeitos apetrecharam-se de gorros de lã e óculos escuros e ingressaram sem pressa no local (de acordo com o depoimento do empregado da caixa um deles e ignora a especificação do indivíduo assobiava) transportando espingardas de canos serrados e pistolas do Exército e concedo-me uma breve digressão no meu entender não inteiramente despicienda para sublinhar no caso de me autorizarem uma nota íntima que as estações de serviço à noite iluminadas na beira do caminho me fazem sentir menos desditoso e só quando regresso de Ermesinde aos domingos de madrugada da visita mensal à minha filha, o mundo com as suas árvores confusas e as suas povoações logo perdidas cujo nome desconheço me surge demasiado grande para conseguir entendê-lo e as bombas de gasolina próximas, nítidas, ia escrever cúmplices mas retive-me a tempo me garantem que apesar de tudo possuo um lugar ainda que ínfimo no concerto do universo, alguém talvez me espere tomara descobrir em que sítio com a chávena de um sorriso numa toalha amiga e eu comovido senhores, eu grato, peço perdão de inserir num documento oficial e em papel do Estado este desabafo importuno e este desejo absurdo de companhia: rodar a fechadura e escutar na despensa, na sala, não ouso sugerir que no quarto uma voz que pronuncia o meu nome
- És tu?
*
"Meu Nome é Legião"
Autor: António Lobo Antunes
Editora: Alfaguara
Páginas: 336
Quanto: R$ 53,90
quarta-feira, 1 de julho de 2009
Romance de Lobo Antunes aborda comportamento violento de jovens
Assinar:
Postar comentários (Atom)
Nenhum comentário:
Postar um comentário