quarta-feira, 1 de julho de 2009

Romance de Lobo Antunes aborda comportamento violento de jovens


da Folha Online

Um dos nomes de peso da 7ª Flip (Festa Literária Internacional de Paraty), que acontece de 1º a 5 de julho, o escritor português António Lobo Antunes, 67, conversa com o público no sábado (4), às 19h, na mesa "Escrever é Preciso".


Autor de mais de 20 romances, Antunes foi vencedor do prêmio Camões em 2007 e é tido como o maior escritor lusitano após Eça de Queirós.

Formado em Medicina e especializado em psiquiatria, começou sua carreira de escritor depois de retornar da Guerra Colonial Portuguesa em Angola (1961-1974). Suas primeiras obras destacaram-se pelo forte caráter autobiográfico, enquanto as demais versam sobre os mais diversos temas.

Seu romance "Meu Nome é Legião" (Alfaguara, 2009), recém lançado no Brasil, conta a história de um grupo de jovens que roubam dois carros e praticam crimes bárbaros pela autoestrada. Recontando os acontecimentos inicialmente sob a forma de um relatório escrito por Gusmão, policial em fim de carreira, a obra passa a entrelaçar os pensamentos desse homem solitário aos depoimentos dos outros personagens que, de uma forma ou de outra, estão ligados ao destino dos jovens criminosos.

Aparentemente técnico e objetivo, o texto aos poucos se transforma em uma trama narrativa de múltiplas vozes, criando um mosaico de contrastes sobre a injustiça e a dor.

Leia trecho do livro "Meu Nome é Legião" (Alfaguara, 2009) abaixo.

*
Os suspeitos em número de 8 (oito) e idades compreendidas entre os 12 (doze) e os 19 (dezanove) anos abandonaram o Bairro 1º de Maio situado na região noroeste da capital e infelizmente conhecido pela sua degradação física e inerentes problemas sociais às 22h00 (vinte e duas horas e zero minuto) na direcção da Amadora onde julga-se que por volta das 22h30 (vinte e duas horas e trinta minutos) hipótese sujeita a confirmação após interrogatório quer dos suspeitos quer de eventuais testemunhas até ao momento não localizadas furtaram pelo método denominado da chave-mestra (sujeito a confirmação também e que adiantamos como provável derivado ao conhecimento do modus operandi do grupo) 2 (duas) viaturas particulares de média potência estacionadas nas imediações da igreja a curta distância uma da outra e no lado da rua em que os candeeiros fundidos (vandalismo ou situação natural?) permitiam actuar com maior discrição após o que se dirigiram para a saída de Lisboa no sentido da auto-estrada do norte utilizando a via rápida que por não se acharem as ditas viaturas munidas do dispositivo magnético necessário à sua utilização registou as matrículas conforme fotocópia anexa aliás não muito nítida e previne-se respeitosamente o comando para a urgência de melhoramentos no equipamento caduco: fotocópia número 1 (um) embora perceptível é verdade com uma lupa decente.

Temos motivos para adiantar com base em actuações pretéritas essas sim já aferidas que os suspeitos se distribuíram nos veículos de acordo com a ordem habitual ou seja o chamado Capitão de 16 (dezasseis) anos mestiço, o chamado Miúdo de 12 (doze) anos mestiço, o chamado Ruço de 19 (dezanove) anos branco e o chamado Galã de 14 (catorze) anos mestiço na dianteira e os restantes quatro, o chamado Guerrilheiro de 17 (dezassete) anos mestiço, o chamado Cão de 15 (quinze) anos mestiço, o chamado Gordo de 18 (dezoito) anos preto e o chamado Hiena de 13 (treze) anos mestiço assim apelidado em consequência de uma malformação no rosto (lábio leporino) e de uma fealdade manifesta que ousamos sem receio embora avessos a julgamentos subjectivos classificar de repelente (vacilámos entre repelente e hedionda) a que se juntava uma clara dificuldade na articulação vocabular muitas
vezes substituída por descoordenação motora e guinchos logo atrás, salientando-se a importância do chamado Ruço ser o único caucasiano (raça branca em linguagem técnica) e todos os companheiros semi-africanos e num dos casos negro e portanto mais propensos à crueldade e violência gratuitas o que conduz o signatário a tomar a liberdade de questionar-se preocupado à margem do presente relatório sobre a justeza da política de imigração nacional.

Cerca das 23h00 (vinte e três horas e zero minutos) as duas viaturas alcançaram a primeira estação de serviço do trajecto Lisboa-Porto a cerca de 30 (trinta) quilómetros das portagens tendo parado com os motores a trabalharem (existia apenas uma furgoneta numa das bombas)
diante do estabelecimento envidraçado no qual se efectua a liquidação do montante de gasolina adquirida e onde se pode malbaratar dinheiro em revistas jornais tabaco (espero bem que não álcool) pastilhas elásticas e ninharias. No citado estabelecimento encontrava-se o empregado a conversar sentado à caixa registadora com o condutor da furgoneta e outro empregado mais idoso a varrer o soalho adjacente a uma porta de escritório ou compartimento de arrumos (deseja-se que não destinado à venda clandestina de bebidas espirituosas) com a placa Interdita A Entrada mal aparafusada à madeira.

Os suspeitos apetrecharam-se de gorros de lã e óculos escuros e ingressaram sem pressa no local (de acordo com o depoimento do empregado da caixa um deles e ignora a especificação do indivíduo assobiava) transportando espingardas de canos serrados e pistolas do Exército e concedo-me uma breve digressão no meu entender não inteiramente despicienda para sublinhar no caso de me autorizarem uma nota íntima que as estações de serviço à noite iluminadas na beira do caminho me fazem sentir menos desditoso e só quando regresso de Ermesinde aos domingos de madrugada da visita mensal à minha filha, o mundo com as suas árvores confusas e as suas povoações logo perdidas cujo nome desconheço me surge demasiado grande para conseguir entendê-lo e as bombas de gasolina próximas, nítidas, ia escrever cúmplices mas retive-me a tempo me garantem que apesar de tudo possuo um lugar ainda que ínfimo no concerto do universo, alguém talvez me espere tomara descobrir em que sítio com a chávena de um sorriso numa toalha amiga e eu comovido senhores, eu grato, peço perdão de inserir num documento oficial e em papel do Estado este desabafo importuno e este desejo absurdo de companhia: rodar a fechadura e escutar na despensa, na sala, não ouso sugerir que no quarto uma voz que pronuncia o meu nome
- És tu?

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"Meu Nome é Legião"
Autor: António Lobo Antunes
Editora: Alfaguara
Páginas: 336
Quanto: R$ 53,90

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